São Paulo, quinta, 7 de janeiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

A crise dos Estados

Qualquer hipótese de rompimento unilateral do acordo da federalização das dívidas dos Estados deve ser rejeitada. Há um contrato na mesa assinado por governadores de Estados, no exercício legítimo de seu mandato, e avalizado pelas respectivas Assembléias Legislativas.
Por outro lado, há um fator a legitimar a reação dos governadores contra o acordo que tem que ser considerado: para a maioria dos Estados, simplesmente vai ser inviável cumpri-lo. Aí não se trata mais sequer de questão jurídica, mas de uma questão financeira.
O acordo foi um avanço, dentro do incipiente federalismo brasileiro. Mas, talvez devido ao seu caráter pioneiro, cometeram-se vários erros de avaliação, que levaram à sua inviabilização.
Uma breve retrospectiva ajudaria a aclarar um pouco a história.
A inviabilização financeira dos Estados teve uma causa e dois culpados, a União e os Estados. A causa foi a estabilização da moeda, que mudou o regime de ajuste orçamentário. Com inflação, o ajuste se dava nas despesas, via indexação imperfeita. Bastava atrasar um mês o reajuste dos subsídios dos servidores, para reduzir a folha em 30%. Com a estabilização encerrou-se esse ciclo.
Simultaneamente entrou-se em uma armadilha conjuntural. Haveria um aquecimento natural da demanda, por conta da estabilização. Com o câmbio apreciado, e a redução indiscriminada das tarifas de importação, esse movimento foi potencializado. Houve aumentos recordes na arrecadação que levaram todos os agentes públicos -da própria União e Estados, municípios e universidades- a elevar proporcionalmente o nível de despesa, crentes de que havia sido instituído um novo piso nas receitas públicas.

Fim de sonho
O sonho durou até meados de 1995, quando a política monetária instituída arrebentou com as contas ao reduzir a arrecadação -sem haver mais a inflação para ajustar o nível de despesas- e ao impor um ritmo de crescimento exponencial nas dívidas estaduais.
A estratégia do governo federal consistiu de duas frentes. A primeira, a federalização das dívidas estaduais, inclusive de dívidas junto aos bancos oficiais. Foi o primeiro erro, porque negociações de mercado, entre os bancos e os devedores, se transformaram em negociações políticas, tirando toda a flexibilidade para a busca de soluções individuais.
A segunda frente consistiu em colocar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para financiar a reestruturação dos Estados, por meio da antecipação de receitas de privatização. Seria uma medida virtuosa, se, simultaneamente, o Ministério da Fazenda e a Secretaria do Tesouro tivessem monitorado a reestruturação dos Estados, por meio da instituição de metas intermediárias - já que reestruturação é um processo conquistado mês a mês.
No entanto, por concessão política do governo federal, além de não haver esse monitoramento, permitiu-se que os recursos fossem utilizados para cobrir déficits operacionais, isto é, para permitir aos governadores adiarem os ajustes. No início do processo, tinham- se Estados deficitários, mas com patrimônio. No final, Estados quebrados e sem patrimônio.

Conta besta
A União julgava contar com dois instrumentos para se proteger. Um deles, um contrato especificando claramente as garantias. Para uma empresa privada, seria o suficiente. No plano das relações políticas federativas, está provado que não, ainda mais se se comprovar que o cumprimento do contrato é inviável.
O segundo, uma inconsistência matemática fatal. Os Estados pagariam o equivalente a um percentual da sua receita. A avaliação era que havia se conseguido um instrumento de auto-ajuste para desequilíbrios conjunturais: em caso de recessão, caindo a receita, automaticamente, cairia o montante a ser pago.
Onde está a inconsistência? É uma continha até besta, de tão simples, mas que passou em branco na época. Confira:
Situação 1: o Estado arrecada 100, tem 60 de folha, mais 30 de despesas essenciais. Sobram 10. Então ele fecha o acordo para pagar a União todo mês o equivalente a 10% da sua arrecadação.
Situação 2: a arrecadação cai 10%. O Estado passa a arrecadar 90. Mas as despesas com a folha continuam em 60 e as despesas essenciais em 30. Portanto os 10% de queda na arrecadação consumiram integralmente os 10% que estavam reservados para pagar os compromissos com a União. O pagamento mensal que ele tinha de FAF caiu 10% (de 10 para 9), mas o dinheiro que ele tinha para pagar caiu 100% (de 10 para 0).
Mesmo Estados que procederam ao ajuste fiscal (como São Paulo) não vão conseguir administrar essa conta. E não haverá nenhuma forma de ajuste que consiga resolver essa situação no curto prazo.
Conclusão: vai ter que se partir para uma renegociação do acordo, que corrija esses vícios de origem. De sua parte, em vez de rompantes, os governadores terão que se comprometer com metas objetivas e factíveis de ajuste nas contas públicas, monitoradas mês a mês. De sua parte, a União terá que facilitar a travessia, sem abrir mão das garantias contratuais.

E-mail: lnassif@uol.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.