São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Desdobramentos do caso Nestlé/Garoto

GESNER OLIVEIRA

A decisão do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) de desfazimento da compra da Garoto pela Nestlé representa marco na aplicação da defesa da concorrência no Brasil e no Mercosul que terá efeitos duradouros em vários setores.
É risível a objeção ao rigor do Cade nessa operação sob a alegação de que chocolate não é um bem essencial. O Cade não é nutricionista para dizer o que é essencial na dieta do brasileiro. Sua função é aplicar a lei de defesa da concorrência em cada caso, levando em consideração as informações relevantes e as peculiaridades de cada mercado.
A aplicação da lei, por sua vez, emite um sinal aos vários segmentos daquilo que é lícito e daquilo que é falta no jogo do mercado. Assim, algumas poucas decisões importantes servem de guia para um sem-número de setores, substituindo o oneroso e ineficaz monitoramento sobre o conjunto da economia. Nos EUA, por exemplo, uma decisão envolvendo uma querela entre estações de esqui (que, aliás, lembra chocolate) influencia até hoje a discussão sobre infra-estrutura essencial em utilidades públicas, como telefonia e eletricidade.
No caso Nestlé/Garoto, verificou-se sensível aumento do poder de mercado sem uma contrapartida de redução de custos que pudesse justificar a operação do ponto de vista da concorrência. Isso está amplamente documentado no sólido voto do conselheiro Thompson de Andrade.
Tampouco resiste à análise e aos fatos a interpretação de que a decisão da última quarta-feira estaria em contradição com a jurisprudência do Cade. Há um inegável salto de qualidade, como é normal em qualquer processo de evolução institucional. Mas não há incoerência com as jurisprudências nacional ou internacional.
Ordens de desinvestimento pelo Cade já foram emitidas desde a implantação do controle de fusões no Brasil, em 1994. Os casos Eternit/Brasilit e Rhodia/Sinasa, em 1994, Gerdau/Pains, em 1995/ 96, e a própria AmBev, em 2000, são alguns exemplos, além da determinação mais recente de venda de 16 lojas de supermercados e hipermercados.
O fato de a constituição da AmBev ter gerado concentração elevada e comparável à da Nestlé/ Garoto não significa que a decisão do Cade deveria ser a mesma. Em antitruste, cada caso é um caso, observada a coerência com relação à metodologia de análise. A concentração de mercado não é condição suficiente, nem mesmo necessária, para concluir acerca dos efeitos concorrenciais de uma operação.
Apenas para citar uma das diferenças, no caso da AmBev verificaram-se eficiências compensatórias relativamente altas quando comparadas com as da Nestlé/ Garoto. Isso é demonstrável, aplicando-se a mesma metodologia de cálculo da OCDE adotada em várias jurisdições e minuciosamente aplicada pelo conselheiro Thompson Andrade no caso Nestlé/Garoto.
Em vez do tititi que costuma seguir decisões de maior repercussão, as empresas e analistas de mercado deveriam se debruçar sobre os votos e as razões de decidir do Cade, que estão disponíveis em www.cade.gov.br. Trata-se de material indispensável para elaborar análises de risco concorrencial, necessárias ao planejamento de qualquer operação. Da mesma forma, as associações de consumidores deveriam estar atentas para municiar as autoridades antitruste de informações úteis para a tomada de decisão.
É legítima a preocupação do governo do Espírito Santo com o impacto que a decisão possa ter sobre o nível de emprego. Aliás, diferentemente daquilo que reza a cartilha antitruste dos EUA, essa é uma preocupação que deveria ser considerada na defesa da concorrência em países em desenvolvimento, como tem sido feito, por exemplo, na África do Sul.
Ocorre, porém, que, no caso da Nestlé/Garoto, a melhor maneira de defender o investimento e o emprego naquele Estado é implementar de forma rápida a decisão do Cade. Isso porque a venda para um novo grupo impede a depreciação dos ativos e a demissão dos trabalhadores, assegurando novas inversões, emprego e arrecadação para a região.
Eventual recurso ao Judiciário contra uma decisão sólida do ponto de vista técnico tem futuro incerto. Seria melhor para os trabalhadores que o governador do Espírito Santo se empenhasse em atrair um novo investidor para adquirir a Garoto, que, dentro das regras do mercado, pudesse assumir compromissos de expandir os negócios e o emprego naquele Estado.
A forma colegiada, transparente e independente em que a decisão do Cade foi tomada, em uma sessão presidida com serenidade e competência pelo presidente João Grandino Rodas, oferece o modelo a ser seguido pelo governo federal no projeto de agências reguladoras, que se encontra em elaboração pelo Executivo. Sem esquecer, naturalmente, dos recursos orçamentários indispensáveis para que o trabalho possa ser executado em tempo econômico.


Gesner Oliveira, 47, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.

Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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