São Paulo, Sexta-feira, 07 de Maio de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

Armadilhas fiscais

MAILSON DA NÓBREGA

Poucos temas permanecem tão esotéricos no Brasil como a questão fiscal, a qual, por isso, se presta a análises superficiais e a conclusões simplistas.
Analistas não-iniciados costumam basear-se em lições de livros-texto e cometem erros. Afirmam, por exemplo, que a desvalorização reduzirá o déficit público porque o aumento da atividade econômica ampliará a arrecadação de receitas.
No Brasil, entretanto, o aumento da receita incrementa também a despesa, pois sua maior parte é transferida a Estados e municípios ou vinculada a gastos predeterminados.
Críticos da política cambial anterior caíram em outra armadilha. Com base em exame perfunctório das estatísticas do setor público, afirmaram que ela quintuplicou a dívida e recriou o déficit. Apresentaram argumentos fraquíssimos para comprovar a tese.
O analista desavisado que olhar o custo dos juros nominais em 1998, de 8,03% do PIB, pode dizer que eles são os responsáveis pelo déficit público nominal, que atingiu, no mesmo ano, 8,02% do PIB.
Será da mesma forma induzido a erro se comparar a situação atual com a de 1994, como muitos o fazem. Ao ver que havia superávit operacional de 1,37% do PIB naquele ano, dirá que o Plano Real e sua política cambial transformaram o superávit em déficit.
Nesse diapasão, culpará também a política cambial pelo aumento da dívida líquida, que era de 29,2% do PIB em 1994 e subiu para 42,6% do PIB em 1998.
O correto, todavia, é comparar qualquer ano com 1988, quando entrou em vigor nossa desastrada Constituição. Naquele ano, o déficit operacional era de 5,12% do PIB, os juros reais, de 6,13% do PIB, e a dívida líquida, de 55,2% do PIB.
Por que o déficit público de 1988 virou superávit em 1994? Por que a dívida caiu quase à metade, apesar de a Constituição ter contribuído para aumentar gastos e juros? Como explicar esses resultados se não houve nenhum ajuste fiscal duradouro no período?
Três fatores explicam esse aparente mistério: a inflação, o aumento da carga tributária e o manejo da correção monetária nos planos de estabilização.
A inflação permitia cortar gastos reais pelo mero adiamento dos desembolsos das dotações orçamentárias.
Nos tributos, sem margem para cortar despesas, o governo precisava arrecadar mais para cobrir gastos obrigatórios. A carga passou de 20% do PIB em 1988 para algo como 32% do PIB este ano.
O déficit e a dívida reais despencavam com o manejo da correção monetária (os vetores). Quanto maior a inflação pré-plano, maior era a garfada. O Plano Collor trouxe ainda o confisco explícito de riqueza financeira e o sequestro de ativos financeiros.
Por isso, os resultados de 1990 foram espetaculares. A dívida pública caiu de 51,9% do PIB para 36,6% do PIB em apenas um ano. No conceito operacional, o déficit de 1,43% do PIB passou a superávit de 7,37% do PIB.
O Plano Real praticamente extinguiu todos esses artifícios. Acabou com a superinflação, diminuiu o espaço para ampliar a carga tributária e fechou a porta para a manipulação da correção monetária.
Ao mesmo tempo, a estabilidade fez aparecer despesas que permaneciam encobertas pelo espesso véu da superinflação. Surgiram os "esqueletos", isto é, gastos, subsídios e dívidas não contabilizados.
Os "esqueletos" passaram a ser registrados em 1996. Até 1998, eles explicam 22% do crescimento da dívida líquida total. No governo federal, os "esqueletos" representam 28,4% da expansão da dívida.
Assim, a partir de 1994, o déficit e a dívida adquiriram a trajetória explosiva que deveria ter ocorrido depois da Constituição. Os juros, em grande parte reflexo da dívida, eram de 6,13% do PIB em 1988, apenas 1,9% do PIB menor do que o seu valor em 1998.
Os juros do período do Plano Real contribuíram para o aumento da dívida, mas longe do desastre que se diz por aí. Tinham muito mais a ver com outros fatores do que com o objetivo de sustentar a política cambial.
Sem conseguir analisar adequadamente o complexo campo das finanças públicas brasileiras, os críticos mais empedernidos e desavisados da política cambial dizem que ela trouxe apenas males, o que é um exagero, para dizer o mínimo.
A situação fiscal é mais grave do que aparenta. É uma pena que o espaço para debatê-la seja ocupado por críticas ligeiras, que turvam o ambiente e, de tanto repetidas sem contestação oficial, terminam virando verdade.


Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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