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São Paulo, quinta-feira, 07 de agosto de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A Alca no governo Lula

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A política externa tem sido até agora um dos pontos altos, talvez o mais alto, do governo Lula. Nesse campo, a nova administração vem implementando importantes mudanças de orientação. Isso aparece, por exemplo, na negociação da Alca, sabidamente a mais delicada e perigosa para o Brasil.
O novo governo herdou uma agenda ambiciosa de negociação, que, tendo sido concebida basicamente pelos EUA, incluía os temas de seu interesse (investimentos, serviços, propriedade intelectual e compras governamentais, por exemplo), ao mesmo tempo em que deixava de fora questões de interesse do Brasil e de outros países latino-americanos (como agricultura, legislação antidumping e livre circulação de trabalhadores).
O governo Lula resolveu então não apresentar na Alca ofertas para as áreas de serviços, investimentos e compras governamentais. A proposta inicial do Mercosul de liberalização do comércio de bens industriais e agrícolas, apresentada em fevereiro, foi muito cautelosa. Os produtos foram distribuídos em quatro prazos para a diminuição tarifária. Em termos de valor de comércio, 20% foram colocados no grupo que teria liberalização imediata; 3%, em até cinco anos; 16%, em até dez anos; e 61%, em mais de dez anos.
Além disso, a oferta de bens incluiu cláusulas de salvaguarda para indústrias nascentes e para o balanço de pagamentos. Ficou também condicionada à eliminação das barreiras não-tarifárias e dos subsídios que distorcem o comércio e à negociação de disciplinas que impeçam o uso abusivo de leis antidumping (ver "Ofertas Iniciais na Alca", www2.mre.gov.br/alca/ofertas.htm).
Ao longo do primeiro semestre, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, foi substituindo os principais negociadores e nomeando para os postos-chave diplomatas identificados com a nova orientação da política externa. Em contraste com o continuísmo e o imobilismo que prevalecem em outros setores do governo, notadamente na Fazenda e no Banco Central, o Itamaraty vem demonstrando que é possível, sim, mesmo em áreas sensíveis, introduzir novas práticas e prioridades, mais condizentes com os interesses nacionais.
Agora em julho o ministro Amorim trouxe a público as linhas mestras do posicionamento do Brasil na negociação da Alca, aprovadas pelo presidente da República e que já haviam sido objeto de estreita consulta com os demais integrantes do Mercosul e expostas aos EUA e a outros governos de países participantes da negociação. Esse posicionamento foi explicado por Amorim em artigos publicados na imprensa ("A Alca possível", Folha, 8 de julho; e "Comercio y desarrollo: qué Alca es posible?", "Clarín", 1º de agosto) e, na última segunda-feira, em entrevista ao programa "Roda Viva", da TV Cultura.
O novo enfoque distribui os tópicos da negociação em três "trilhos". No primeiro trilho, na negociação 4 + 1 entre o Mercosul e os EUA seria tratada a substância dos temas de acesso a mercados em bens e, de forma limitada, em serviços e investimentos. O segundo trilho, a negociação da Alca, envolvendo 34 países, visaria a definição de uma espécie de "acordo quadro", que abordaria elementos básicos como solução de controvérsias, tratamento especial para países em desenvolvimento, fundos de compensação, regras fitossanitárias e facilitação de comércio. Para um terceiro trilho, a negociação multilateral na OMC, seriam transferidas questões sensíveis para o Brasil, como a parte normativa de propriedade intelectual, serviços, investimentos e compras governamentais.
Trata-se de uma manobra engenhosa, que representa uma mudança significativa na abordagem do problema. Pela primeira vez desde que a Alca foi lançada, em fins de 1994, o Brasil questiona a estrutura da negociação. Percebe-se sem maior dificuldade que o novo enfoque implica um grande esvaziamento da Alca, uma vez que transfere os assuntos mais importantes para o primeiro e o terceiro "trilhos".
Os EUA não devem ter gostado, evidentemente. Mas ficaram em posição desconfortável.
Afinal, o posicionamento do Brasil se apóia em atitudes e precedentes estabelecidos pelo próprio governo dos EUA. Quem fragmentou a Alca foram os EUA, ao negociarem acordo bilateral de livre comércio com o Chile, iniciarem negociações separadas com os países da América Central e apresentarem, no âmbito da Alca, propostas diferenciadas de abertura do seu mercado, reservando tratamento mais desfavorável para os países do Mercosul. Ao propor a transferência para a OMC de diversos temas sensíveis para o Brasil, o governo brasileiro está apenas seguindo o exemplo dos EUA, que remetem para o âmbito multilateral os temas sensíveis para eles, como agricultura e antidumping.
Na semana passada, a embaixadora americana no Brasil, Donna Hrinak, afirmou que as negociações da Alca estão passando por um "período crítico". Indagada sobre a hipótese de uma "Alca mínima", que excluiria questões controvertidas, a embaixadora declarou que "é umas das propostas que vamos considerar".
O enfoque sugerido pelo Brasil tem chances de prosperar? Creio que sim. A proposta foi bem pensada e bem apresentada. O resultado vai depender obviamente das reações dos outros países participantes da negociação da Alca, especialmente dos EUA.
Outra variável fundamental, leitor, é a "quinta-coluna", sempre muito ativa no Brasil...
Volto ao assunto em outra oportunidade.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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