São Paulo, segunda-feira, 07 de outubro de 2002

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ARTIGO

A instabilidade global e suas desastrosas consequências

JOSEPH STIGLITZ


Nosso mundo está tão inclinado à crise financeira quanto sempre esteve. Com o colapso da Argentina, e com Brasil e Turquia perto do limite, os últimos meses salientaram nosso fracasso em enfrentar problemas básicos. Mas não são apenas os países em crise que estão desiludidos. Em toda a América Latina, onde liberalização, privatização e controle da inflação foram rapidamente efetuados, os países continuam esperando as recompensas prometidas. O crescimento nos anos 90 foi pouco superior à metade do de décadas anteriores à reforma.
É verdade que houve progressos. Por exemplo, o FMI reconsiderou sua posição sobre a liberalização do mercado de capitais. Também está repensando o uso de empréstimos de socorro, que se mostraram amplamente ineficazes, e está falando mais em pobreza que antes. Mas vários problemas fundamentais permanecem.
Primeiro, há uma instabilidade básica no sistema atual, que se concentra em países com déficits comerciais. Por definição, a soma dos déficits comerciais deve ser igual aos excedentes. Se alguns países, como Japão e China, insistem em ter um excedente, no agregado o resto deve estar em déficit. Se um país reduz seu déficit, como acontece normalmente depois de uma crise, ele simplesmente aparece em algum outro lugar no sistema global. O sistema talvez tenha se comportado melhor do que se poderia esperar porque os EUA agiram como déficit de último recurso. Por quanto tempo ainda o país mais rico poderá continuar emprestando? Por quanto tempo continuará o apetite do resto do mundo por títulos e ações dos EUA?
Segundo, é muito difícil para os pobres suportar os riscos das flutuações das taxas de câmbio e de juros. As consequências desse desequilíbrio são muitas vezes desastrosas. A dívida que parece moderada torna-se insuportável depois de desvalorizações.

Riscos assimétricos
Os mercados deixaram de desenvolver mecanismos adequados para a distribuição dos riscos, e as instituições econômicas internacionais deveriam pelo menos começar a discutir como assumir esse papel. Diante do grande número de países com dívidas insustentáveis, existe a necessidade de dar melhores conselhos sobre gerenciamento de riscos. Como cada empréstimo tem um credor e um mutuário, e os credores supostamente são mais sofisticados no gerenciamento de riscos que os pobres mutuários, uma grande parte do problema deve estar nos credores.
Terceiro, a experiência argentina demonstrou que também falhamos em aprender a administrar crises. Certamente a Argentina tem uma parte da culpa; mas, mesmo que o país fizesse tudo o que o FMI recomendou e não houvesse corrupção, há poucos motivos para acreditar que a crise seria evitada ou que a crise teria sido menos profunda. Suponhamos que a Argentina tivesse sido "boa" e recebesse empréstimo do FMI. Os investidores estrangeiros teriam começado a ingressar num país ainda em depressão? É muito pouco provável.
Precisamos de políticas para reativar a economia real, o que quer dizer criar mercados para produtos argentinos e fornecer crédito a suas empresas. Um estudo do Banco Mundial mostra que o que impeliu a recuperação mexicana foi o comércio com os EUA, financiado por importadores americanos, mais que a ajuda do FMI. A recuperação do Sudeste Asiático foi incentivada pela iniciativa Miyazawa do Japão, que forneceu bilhões em crédito comercial. Não tivemos nada parecido para oferecer à Argentina.
Em quarto lugar, os acordos comerciais precisam ser mais justos. As exportações fornecem renda e empregos, mas os acordos comerciais têm sido assimétricos: o Norte não tem feito o suficiente para abrir seus mercados ao Sul. O aumento dos subsídios à agricultura nos EUA piorou ainda mais as coisas. Os ministros das Finanças deveriam contar com seus colegas do Comércio para tornar a rodada de negociações de Doha realmente uma rodada de desenvolvimento.
Quinto, o comércio também deveria ser usado como instrumento de estabilidade econômica. No passado, os países que enfrentavam recessão econômica ou ataque de importações aumentavam as tarifas para se proteger. Essas políticas exacerbaram a Grande Depressão. Uma política comercial positiva de abrir temporariamente os mercados para os países em crise não seria melhor? Vendas adicionais de vinho, carne e trigo argentinos ajudariam a ressuscitar a economia do país, mais que os bilhões de dólares do FMI.
Sexto, o 11 de setembro e a guerra ao terrorismo, mais uma vez, levantaram a questão da transparência no setor financeiro. Os efeitos enervantes das contas bancárias secretas no mundo em desenvolvimento ainda têm de ser enfrentados. Eles são centrais para facilitar a corrupção, a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro das drogas, que enfraquecem tantos países em desenvolvimento.
Finalmente, há discussões sobre falência de governos e a proposta do FMI para um mecanismo de reestruturação de dívidas. Mas existe uma preocupação sobre o papel central que o FMI gostaria de assumir. Pode um único credor exercer um papel central no processo de falência em vez de um entre vários credores? Claramente, ele não pode ser o juiz da falência. Numa instituição em que predominam os credores, seria como delegar a reforma das falências nos EUA aos bancos. Nenhuma democracia acharia isso aceitável.
A globalização preocupa as pessoas comuns, não apenas autoridades. No entanto, suas vozes não estão sendo ouvidas. Repensar a arquitetura econômica global para garantir que elas sejam ouvidas é o desafio mais importante que a comunidade global enfrenta hoje.


Joseph Stiglitz é professor de economia na Universidade Columbia (EUA) e foi economista-chefe do Banco Mundial.

Tradução de Luiz Roberto Gonçalves


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