São Paulo, segunda-feira, 07 de novembro de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

A competência da Argentina

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

Enquanto só ouvimos de Washington elogios para a política econômica brasileira, as críticas ao governo Kirchner não cessam. Foram fortes durante o período angustiante da renegociação da dívida e voltaram a crescer nos últimos tempos. Sugere-se que o governo argentino seria "populista" e "anti-reformista" -duas palavras-chave do vocabulário usado pela ortodoxia convencional quando quer manifestar sua inconformidade. E, no entanto, como também acontece com as economias asiáticas mais dinâmicas, que também não seguem as diretivas vindas do Norte, a economia argentina vem apresentando uma extraordinária performance nos últimos três anos, claramente superior à da economia brasileira.
É impressionante a recuperação. Ainda que declinante, a taxa de crescimento do PIB prevista para este ano é ainda superior a 7%. E a taxa de acumulação de capital voltou a se aproximar dos 20%. Assim, depois de uma crise violentíssima, fruto da submissão do presidente Menem a Washington, mantendo o câmbio fixo e apreciado e adotando a estratégia correlata de crescimento com poupança externa, a economia do país-irmão volta a crescer.
A recuperação dos quatro anos de crise explica apenas uma parte desses bons resultados, que se devem principalmente à firmeza que o governo argentino demonstrou em renegociar uma dívida externa que era totalmente impagável (o que não é o caso do Brasil) e a uma política econômica competente e voltada para o interesse nacional e, por isso mesmo, resistente aos conselhos e pressões vindos de Washington.
Os três pilares da política macroeconômica que o ministro Lavagna vem levando adiante são a firmeza fiscal, expressa em um superávit fiscal de 3,6% do PIB, uma taxa de juros básica real negativa (como também hoje acontece com os países desenvolvidos) e amplos superávits em conta corrente viabilizados pela manutenção da depreciação de cerca de 100% da taxa de câmbio real efetiva ocorrida de 2001 para 2002. Observe-se que essa política é muito superior à que vem sendo aplicada na economia brasileira, que continua a apresentar um déficit fiscal superior a 3% do PIB, mantém sua taxa de juros real em torno de 14% (sic) e viu sua taxa de câmbio retornar aos níveis anteriores à crise cambial de 1998.
Dada essa diferença objetiva de qualidade da política macroeconômica, entende-se por que o risco Argentina não pára de cair, já havendo se equiparado ao do Brasil, e por que os mercados financeiros internacionais estão cada vez mais otimistas em relação à Argentina e desconfiados em relação ao Brasil, não obstante a recente renegociação da dívida.
Essa posição dos mercados financeiros, embora contraditória com a atitude negativa em relação ao governo Kirchner, não é surpreendente. A crítica a Kirchner é ideológica, refletindo interesses, enquanto as avaliações de risco precisam ser técnicas, já que as empresas que se encarregam dessa tarefa são competitivas e resguardam sua reputação.
É verdade que a inflação tem subido -está prevista uma taxa de 11,5% em 2005. As autoridades argentinas, porém, estão tranqüilas: sabem que, desde que não haja indexação, os preços voltarão a cair. Isso, entretanto, não impede o FMI de voltar a fazer pressão sobre o governo argentino para que valorize o câmbio a fim de reduzir a inflação. É por meio da recomendação de câmbio apreciado combinado com crescimento com poupança externa (déficit em conta corrente) que os países do Norte, cujos interesses essa organização representa fielmente, neutralizam a capacidade competitiva dos países de mão-de-obra barata e assim impedem seu desenvolvimento: apenas os torna mais dependentes e remetendo mais juros e lucros para o exterior.
O governo argentino, entretanto, já deixou claro que não se deixará atemorizar. Se o presidente Kirchner não recorreu ao populismo cambial para alcançar uma vitória eleitoral extraordinária há duas semanas, não é agora que o fará. Graças à sua firmeza e à excelente equipe econômica que o está assessorando, ele desponta como um líder latino-americano de primeira grandeza.


Luiz Carlos Bresser-Pereira, 71, professor da Fundação Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia, é autor de "Desenvolvimento e Crise no Brasil: 1930-2002".
Internet: www.bresserpereira.org.br

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