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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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ESPETÁCULO EM XEQUE

Ex-presidente do BC afirma que taxa real tem de diminuir para 3% a 5% no período de 12 a 24 meses

Eris defende inflação maior para juro cair

CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Presidente do BC (Banco Central) em 1990 e 1991, quando o Brasil era comandado por Fernando Collor de Mello e ainda lutava contra a hiperinflação, o economista Ibrahim Eris afirma que o país não entrará em uma rota de crescimento sustentado se mantiver taxas de juros reais de 8% a 10% ao ano e uma moeda sobrevalorizada em relação ao dólar.
Crítico do que considera extremo conservadorismo do BC, Eris defende que o país conviva com inflação mais alta que a prevista pelo governo para os próximos anos, se este for o preço a pagar pela queda dos juros e a conquista do crescimento sustentado.
O economista afirma que é impossível saber qual é a taxa de equilíbrio dos juros reais no Brasil, mas afirma que só um nível de 3% a 5% é tolerável a longo prazo.
Eris vai mais longe e propõe a redução, a partir de 2005, da meta de 4,25% de superávit primário, que é a economia feita pelo governo para pagar os juros da dívida pública. A seguir, a entrevista concedida à Folha:

 

Folha - O Brasil tem condições de ter hoje juros reais de 6% a 8%, como deseja o ministro José Dirceu?
Ibrahim Eris -
Fico muito assustado quando vejo meus colegas -e, em certo momento, o Banco Central também levantou a hipótese- dizendo que a taxa real de equilíbrio no Brasil é algo em torno de 8% a 10%. Antes de mais nada, tem de ser questionado esse patamar. Os 6% a 8% do José Dirceu me pareceram como uma transição a uma taxa mais civilizada de 3%, 4%, 5% ou 6%. É possível um país conviver ano após ano com juro real de 8% a 10%? A resposta é simples: não, não e não.

Folha - Mas o Brasil convive há anos com taxas desse nível...
Eris -
E olhe onde estamos. Quando digo que não dá para conviver, quer dizer que essas taxas nos condenariam a níveis de crescimento extremamente baixos, que significaria estagnação de renda per capita, que colocaria o setor público eternamente na situação em que está hoje.
Isso quer dizer um setor público que gera superávits primários elevados para poder manter a dívida pública sob controle -o que em qualquer hipótese tem de ser feito-, mas isso implica sempre uma carga tributária extremamente elevada, que sufoca a economia, o setor privado e resulta em investimentos baixos.
Para nós sairmos dessa armadilha, a taxa de juros tem de ser mais baixa. Uma taxa de juros de 9% significa que se a economia crescesse a 3%, ano após ano, com essa taxa -e acho que não cresce- nós estaríamos condenados a ter um superávit primário próximo de 3,5%. Com 3,5%, haveria espaço para reduzir a carga tributária, o que é indispensável, e para o governo investir na infra-estrutura? Obviamente, a resposta é não. Que tipo de crescimento é esse?
Colocando um pequeno "spread" bancário, nós estamos falando de taxa de juros de 15% a 20% real na primeiríssima linha de empresas. Quais são os projetos que rendem, ano após ano, sem risco, de 15% a 20%? Por que o sujeito vai investir para gerar os tais 3% de crescimento? Isso não vai acontecer.
Se a economia exige 8% a 10% permanentemente, existe algo de errado com o seu modelo, porque ela está se inviabilizando. É viável ter taxa de juros menores neste país? Eu tenho obrigação de dizer que sim. Não estou dizendo que temos de baixar os juros reais hoje, de 9% a 10% para 3%, 4%. Mas, se quisermos crescer, temos de viabilizar taxas reais, no mercado Selic, de 3%, 4%, no máximo 5%.

Folha - Em que período?
Eris -
Nos próximos 12 a 24 meses. Se quisermos abrir perspectivas de crescimento para pós-2004, temos de estar nessa trajetória. Estou convencido de que o crescimento de 2004 será um vôo de galinha, como dizem, se alguns ajustes macroeconômicos não forem feitos e se a agenda microeconômica não estiver já iniciada.
É viável um crescimento no ano que vem de 3% a 3,5%, com inflação de 5,5%, que são as metas do governo. É viável, inclusive com juros reais de 9%. O superávit comercial seria da ordem de US$ 19 bilhões, suficiente para fechar as contas externas.

Folha - O crescimento se sustenta a partir de 2005?
Eris -
Essa é a parte crucial: em 2005 e 2006, nós vamos continuar assim? Olhando para o futuro fico preocupado com a taxa de juros. Nós temos um Banco Central extremamente conservador, mais conservador do que o anterior. Esse Banco Central, e os anteriores também, trabalha com modelos extremamente frágeis de previsão de inflação.

Folha - Por quê?
Eris -
Porque a ciência econômica conhece pouco.

Folha - Então qualquer modelo seria frágil?
Eris -
Seria frágil. Mais frágil ainda em um país como o Brasil, que tem um passado inflacionário extremamente complicado e uma base de dados frágil, que não tem séries muito longas. Não é crítica ao Banco Central, é crítica a nós todos. Nós estamos vendendo ao público uma idéia errada, a idéia de que as decisões estão baseadas em modelos técnicos precisos. Isso não é verdade. Por isso que o Banco Central ou qualquer política econômica é um misto de ciência e arte.

Folha - Esses modelos é que sustentam a teoria de que o piso para o juro real no Brasil é de 8% a 10%?
Eris -
Eu suponho que sim. Quando discutimos esses assuntos econômicos, nós temos de ser mais modestos. Nós realmente não temos condições de saber qual a taxa de juros real de equilíbrio. Sei que há taxas inviáveis por períodos muito longos, taxas que são cinzentas e outras que são perfeitamente viáveis.
Acima de 8%, esquece. Para ser honesto, 7% é inviável. Agora, de 3% a 6%... Como vamos descobrir? Tentativa e erro. E isso é exatamente a fonte de controvérsia, se o Banco Central errou na dosagem ou não. Eternamente nós vamos discutir isso. Eu diria que os fatos mostraram que o Banco Central errou na dosagem da política monetária em 2003.

Folha - O BC arriscará nesse exercício de tentativa e erro ou ficará preso à idéia de que a taxa real de equilíbrio é alta?
Eris -
Não quero ser leviano. Em certo sentido, 2003 foi um ano atípico, porque começamos o ano preocupados com inflação, alguns mais, outros menos. O Banco Central se preocupou mais e optou por ser ultraconservador. Conheceremos a verdadeira face do Banco Central em 2004. Aí nós já teremos uma meta aparentemente viável de alcançar. Vamos ver a audácia do Banco Central e até onde ele quer se arriscar. Em geral, as pessoas não gostam de associar as palavras "arriscar" e "audácia" com bancos centrais, com razão. A arte é fazer sem parecer audacioso ou arriscado.
Em matéria de taxa de juros, outra coisa que tem de ser discutida é a meta de inflação. A de 2005 já está fixada em 4,5%. Talvez nós devêssemos discutir se o nível de 4,5% é desejável. Se chegarmos à conclusão de que para ter 4,5% é necessária uma taxa de juro real de 8% a 10%, eu abriria mão de 4,5%, deixaria a inflação em 5,5% e tentaria baixar os juros.
Talvez o Brasil ainda não tenha avançado o suficiente institucionalmente para gerar inflação de 3%, 4% sem praticar juros elevados, o que é um preço muito alto. Não vejo nada de errado em uma inflação de 6% se perpetuar por mais alguns anos. É um debate que vamos ter de fazer em 2004.

Folha - O sr. admitiria inflação maior para ter mais crescimento?
Eris -
Se em condições de normalidade descobrirmos que o BC realmente não tem como baixar os juros reais a menos de 8% a 10%, vamos ter de discutir as metas de inflação.
Há outro assunto na política macroeconômica que precisa ser debatido um pouco mais, que é a política cambial. Sou adepto de longo tempo do câmbio flutuante, e ele se mostrou eficaz em crises. A questão a discutir é se há espaço, dentro do câmbio flutuante, para a ação corretiva do Banco Central, e eu julgo que há.

Folha - O sr. acredita que o real esteja sobrevalorizado?
Eris -
Ou não. Nós passamos por uma crise em 2002 e no início de 2003 que resultou em maciça venda de nossas reservas, e nossas reservas líquidas estão muito baixas. Isso é uma unanimidade. Isso em geral quer dizer que o Brasil está praticando um nível de câmbio fora de equilíbrio. O equilíbrio seria aquele câmbio consistente com o Banco Central sustentar reservas mais altas que as de hoje.
Segunda coisa: devido à mesma crise, o Banco Central tem dado hedge [proteção contra oscilações na cotação do dólar] ao setor privado em quantidades bastante elevadas. Toda vez que o setor público dá hedge ao setor privado em épocas de normalidade, ele está deprimindo a taxa de câmbio [deixando o dólar com uma cotação menor]. E faz a mesma coisa ao não manter o nível de reservas de equilíbrio.
Seria uma ação corretiva do Banco Central, anunciada, recompor reservas líquidas até chegar a uma meta, que não precisa ser explicitada inicialmente. A mesma coisa pode ser feita com hedge, o Banco Central anunciar que vai diminuir o volume de hedge dentro de determinada programação. É uma ação corretiva porque coloca o câmbio flutuante no equilíbrio. Câmbio flutuante a gente não quer por querer. Queremos porque achamos que forças de mercado vão colocar o câmbio em um patamar que seja sustentável ao longo do tempo. Logo, ele vai sinalizar aos agentes econômicos um valor de dólar que vai permitir a eles tomarem decisões, como exportar, importar e investir.

Folha - Qual seria a taxa de câmbio de equilíbrio hoje?
Eris -
Não sei nem quero saber.

Folha - Mas o real estaria sobrevalorizado?
Eris -
Hoje, possivelmente, sim, mas amanhã posso querer ações corretivas do Banco Central no sentido oposto.
Outra questão polêmica é o crescimento de equilíbrio da economia brasileira. Certamente não é zero, nem 1%, nem -1%. Nem a taxa média de 2,5% dos últimos anos. Se a economia está crescendo abaixo do que poderia, isso também quer dizer que o câmbio está deprimido. Esse câmbio que está aí está resolvendo problemas de balanço de pagamentos com crescimento zero.
Nós podemos comprar ou vender dólares no mercado para corrigir certas distorções. Infelizmente, grande parte das distorções hoje vão na direção de deprimir o câmbio, e não na de desvalorizar o real.

Folha - Não dá para ter o discurso de que o BC não intervém no câmbio porque ele é flutuante?
Eris -
Quem segue esse discurso é que não entende o que é câmbio flutuante. Acha que câmbio flutuante em qualquer hipótese gera uma taxa que seja eficiente.
Finalmente, na área fiscal, acho que a política que está aí é inviável a longo prazo. Ela sufoca todos os agentes. Trabalha com carga tributária extremamente elevada, muito mal distribuída, indutora de sonegação, cheia de distorções. E, mesmo com excessiva carga tributária, não restam recursos para o governo fazer o mínimo necessário na área social ou de infra-estrutura. Teremos de achar meios de baixar o superávit primário, baixar certos tributos, com espaço de investimento para o setor público.

Folha - Isso é tarefa para 2004?
Eris -
Para 2004, não, mas 2005 pode ser. Isso está intimamente ligado à questão dos juros, à questão inflacionária e à audácia do BC. Se provássemos que é viável ter inflação de 5% ou 6% e juro real de 4%, precisaríamos de superávit primário bem menor para estabilizar a dívida pública.

Folha - Hoje parece uma heresia falar em superávit inferior a 4,25%.
Eris -
Então eu sou herege. Obviamente, 4,25% ou 3,5% tem de ser transitório. É como se tivéssemos cometido um crime e estivéssemos pagando por nossos pecados. Mas, uma vez pagos os pecados, temos o direito de ir ao céu.
Não estou falando para fazer isso amanhã. Mas a estratégia de médio e longo prazos tem de ser essa. O que eu não sei é se 3%, 4% de juro real no curto prazo seria consistente com uma inflação muito abaixo de 5% ou 6%. Eu admito uma inflação de 6%, 7%, até 8%, se isso for necessário para baixar o juro real a 3% ou 4%. Pagaremos um custo para reduzir a inflação que certamente não vale a pena. Eu acho que dá para sustentar a inflação em 5% e 6% com taxa de juro real, na Selic, de 3% a 4%. Que quer dizer 10% nominal.
Se Deus me disser "Ibrahim, 3%, 4%, só com 7% de inflação", eu digo "comprei". Porque eu não tenho a idéia de que a partir de "x" a inflação explode. Nos próximos cinco anos, é mais importante achar meios de viabilizar juro real pela Selic em 3%, 4% do que uma inflação indo de 5% para 3%. Aí, sim, começa o círculo virtuoso.

Folha - Mas a necessidade de financiamento externo do país não é um limite para a queda dos juros? Se cair muito não há o risco de o país ter uma fuga de capitais?
Eris -
Há um mérito no "spread" alto que temos entre a Selic e a taxa final. Os juros atuam em dois sentidos: no setor público, e o que falei até agora é setor público, e no setor privado. A questão de fuga de capital se refere mais ao que o setor privado vai pagar. Quando a taxa real Selic é de 3%, 4%, a taxa do setor privado ainda é muito mais elevada do que lá fora.
Por que você acha que eu levantei a questão do câmbio? Porque essa dependência eterna do capital externo também tem de começar a ser encaminhada e, para isso, temos de ter um câmbio que seja de equilíbrio. Quando tivermos isso, vamos ver uma revolução, que começa com exportações e continua com importações.
Vou ficar feliz da vida se, em vez de US$ 20 bilhões de superávit comercial, tivermos US$ 15 bilhões, só que as exportações, em vez de US$ 60 bilhões, forem de US$ 200 bilhões, e as importações, de US$ 185 bilhões. Nosso objetivo tem de ser esse. Com esses volumes, 1% de variação significa, em vez de US$ 600 milhões, US$ 2 bilhões, sua dívida parece menor, suas necessidades de financiamento parecem menores.
Não quero diminuir a importância da agenda microeconômica e da política comercial, mas achar que vamos conseguir essas duas coisas sem o câmbio correto é totalmente errado.
Câmbio correto e taxa de juros correta são condições necessárias. Pode até ser que a economia não cresça, mesmo tendo isso, mas, certamente, sem isso ela não vai crescer. O único jeito de começar o processo de aumentar o volume do comércio exterior é ter um câmbio alinhado.

Folha - Qual seria o volume adequado de reservas líquidas?
Eris -
Não há uma resposta definitiva. As reservas líquidas, descontado o empréstimo do FMI, deveriam ser o dobro de hoje. Ou seja, há uma deficiência de no mínimo US$ 20 bilhões. Se quisermos ser um "player" significativo no mundo, não podemos trabalhar com reservas de US$ 18 bilhões. Provavelmente, com essas ações corretivas, o real vai ser mais desvalorizado do que hoje. Quanto mais, eu não sei. Se for muito mais, eu diminuiria o ritmo de ajuste. Obviamente, corrigir de um dia para o outro essas distorções, ao custo de colocar o câmbio a R$ 4,00, seria maluquice.

Folha - Não há um risco político de o mercado perceber uma eventual ousadia do BC como uma mudança de rumo do governo Lula, que poderia perder a confiança conquistada até agora?
Eris -
O investidor não vai emprestar ao Brasil porque vai saber que um país que não cresce não é viável a longo prazo. Essa unanimidade de crescimento em 2004 é que está segurando um pouco as coisas. Se houver uma frustração em 2004, que não pode ser descartada, porque estamos dependendo de um consumidor que está saindo de um trauma, ou ficar demonstrado que 2004 foi um vôo de galinha, eu garanto que o próprio estrangeiro vai pedir meios para se chegar ao crescimento.
O objetivo final de toda a economia é crescer, é a felicidade da sociedade. O objetivo final da política econômica não é inflação baixa. É melhor o [Henrique] Meirelles [presidente do BC] entregar crescimento para o Lula, porque senão o Lula não vai querer essa política. No lugar dele, eu não iria querer. Se essas políticas atuais, com os números que estão sendo ventilados aí, fazem parte da modelagem deles, temos de ver se isso vai resultar em crescimento ou não. Se resultar em crescimento, resolvido o problema. Eu tenho certeza de que não vai. No máximo, vai ser um vôo de galinha.



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