São Paulo, quinta-feira, 08 de abril de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O programa nuclear brasileiro

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Se o leitor me perguntasse: "Você acredita em vida após a morte?", eu responderia: "Não". E, no entanto,...
Estranha maneira de começar uma coluna de economia. Mas, calma, já explico. O assunto é delicado, conduz facilmente ao ridículo. Pensei em me cercar de Shakespeare ("Há mais coisas entre o céu e a terra...") ou de Einstein ("A tênue linha que separa a física da metafísica..."). Mas vou deixar de lado os dois gênios e as suas frases já surradas pelo excesso de citação. Invoco apenas o nosso gênio nacional, Nelson Rodrigues (outra vez essa figura inapelável e fatal!), que dizia, com muita razão, que só os cretinos completos e acabados não conseguem ser ridículos de vez em quando.
Dei toda essa volta para relatar um episódio que aconteceu comigo na semana retrasada e guarda relação com um assunto que está na primeira página dos jornais, quase todo dia, nos últimos dias.
Na quinta-feira retrasada estive em Porto Alegre para dar uma conferência sobre economia brasileira. Tive uma tarde livre, e fui passear um pouco pelas ruas do centro. Parei em frente a uma dessas mesas colocadas nas calçadas para vender livros usados e outros objetos. Aí acontece o seguinte: um desconhecido, um homem de meia idade que estava a meu lado, uma pessoa simples, um "popular", como se diz, dirige-se a mim de repente e mostra um dos livros expostos, que me passara despercebido. O título do livro: "A Usina Nuclear do Meu Pai". Num primeiro momento, não quis dar trela, temendo uma maluquice qualquer, e tratei de seguir caminho.
Andei uns 20 metros, pensei um pouco e estanquei. Resolvi voltar para comprar o livro. Estranha coincidência. O sujeito não me conhecia; visivelmente não era um leitor de jornais ou um interessado em temas econômicos. Mesmo na hipótese remota de que tivesse me reconhecido, nunca poderia saber que o meu pai foi o negociador do acordo nuclear Brasil-Alemanha e o condutor do programa nuclear brasileiro nos anos 70.
O leitor provavelmente pouco ou nada sabe a esse respeito. Em 1975, durante o governo Geisel, o Brasil iniciou um programa nuclear em cooperação com a Alemanha Ocidental. O programa tinha finalidades pacíficas, mas era ambicioso: envolvia a transferência e a absorção de tecnologias sofisticadas e sensíveis, a construção de uma série de usinas nucleares para geração de energia elétrica, a produção de equipamentos em território nacional e o domínio pelo Brasil do ciclo completo do combustível nuclear, entre outros aspectos. Apesar da oposição cerrada dos Estados Unidos e da União Soviética, o Brasil e a Alemanha foram adiante. O meu pai estava à frente do processo pelo lado brasileiro.
O programa se desenvolveu conforme o planejado nos primeiros anos. Porém, no governo Figueiredo, com a crise da dívida externa e as dificuldades financeiras do país, os planos teuto-brasileiros começaram a parecer ambiciosos demais. Ao mesmo tempo, a necessidade de buscar socorro financeiro em Washington abriu espaço para que o governo dos EUA minasse o programa nuclear brasileiro. O programa foi sofrendo sucessivos cortes e adiamentos. O meu pai acabou pedindo demissão e voltou à sua casa, o Itamaraty, onde ainda desempenharia tarefas importantes nas negociações comerciais do Gatt (o antecessor da OMC) e nas Nações Unidas, como representante brasileiro. Morreu em 1994, há quase dez anos, repentinamente, quando estava ainda em plena atividade -e aflito com a crescente subordinação do Brasil ao chamado Consenso de Washington, aquele conjunto de regras e políticas que os países desenvolvidos não aplicam, mas exportam para os incautos da periferia.
Fiquei cismado. Folheei o livro (um romance futurista escrito em 1985, cujo enredo começa em 1998) e fiquei na mesma. Contei o estranho episódio a alguns amigos. Sexta-feira passada foi meu aniversário, e a minha mãe reuniu os familiares de São Paulo para um jantar. Contei a história outra vez. E perguntei: está acontecendo alguma coisa na área nuclear? Ninguém sabia de nada.
Desde que meu pai morreu, não acompanho mais essa questão. Não voltei ao assunto nem quando o governo Fernando Henrique Cardoso tomou a decisão de aderir ao discriminatório Tratado de Não-Proliferação Nuclear, em 1998, abandonando as posições defendidas pelo Brasil desde que esse tratado foi proposto, no final da década de 60.
No domingo, veio a resposta. Um dos principais jornais dos EUA, o "Washington Post", publicou em primeira página reportagem que levantou suspeitas da existência de um programa nuclear de caráter bélico no Brasil. A reportagem caiu como uma bomba. Desde segunda-feira, o tema nuclear, que ficara quase sempre em segundo plano durante todos esses anos, passou a freqüentar a primeira página dos principais jornais brasileiros, não raro como principal notícia.
O governo dos Estados Unidos está novamente tentando cercear a atuação do Brasil nesse terreno. Porta-vozes do governo Bush, em declarações anônimas, manifestam o desejo de enquadrar o programa nuclear do Brasil e submetê-lo a controle internacional mais detalhado. Na segunda-feira, o "Financial Times", de Londres, previu que "o governo de esquerda do Brasil" sofrerá "pressões internacionais crescentes nas próximas semanas" para permitir inspeções mais completas das suas instalações nucleares.
O correspondente da Folha em Nova York transmitiu declarações sintomáticas de um especialista em América Latina do Brookings Institute, um dos principais "think-tanks" norte-americanos. Segundo esse especialista, "aparentemente há pessoas na administração Lula que são muito nacionalistas" e têm uma "atitude típica dos anos 70".
Alguém precisa avisar os nossos irmãos do Norte de que o Brasil está tentando mudar. Foi-se o tempo -esperemos que para não voltar- em que uma tecnocracia pró-EUA dava as cartas em praticamente todas as áreas do governo FHC. Estamos levantando a cabeça outra vez, em matéria nuclear e em outras áreas.
O meu espaço acabou. Mas tudo indica que não faltarão motivos para voltar ao assunto em breve.


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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