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OPINIÃO ECONÔMICA
O programa nuclear brasileiro
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Se o leitor me perguntasse:
"Você acredita em vida após
a morte?", eu responderia: "Não".
E, no entanto,...
Estranha maneira de começar
uma coluna de economia. Mas,
calma, já explico. O assunto é delicado, conduz facilmente ao ridículo. Pensei em me cercar de Shakespeare ("Há mais coisas entre o
céu e a terra...") ou de Einstein
("A tênue linha que separa a física da metafísica..."). Mas vou deixar de lado os dois gênios e as
suas frases já surradas pelo excesso de citação. Invoco apenas o
nosso gênio nacional, Nelson Rodrigues (outra vez essa figura inapelável e fatal!), que dizia, com
muita razão, que só os cretinos
completos e acabados não conseguem ser ridículos de vez em
quando.
Dei toda essa volta para relatar
um episódio que aconteceu comigo na semana retrasada e guarda
relação com um assunto que está
na primeira página dos jornais,
quase todo dia, nos últimos dias.
Na quinta-feira retrasada estive
em Porto Alegre para dar uma
conferência sobre economia brasileira. Tive uma tarde livre, e fui
passear um pouco pelas ruas do
centro. Parei em frente a uma
dessas mesas colocadas nas calçadas para vender livros usados e
outros objetos. Aí acontece o seguinte: um desconhecido, um homem de meia idade que estava a
meu lado, uma pessoa simples,
um "popular", como se diz, dirige-se a mim de repente e mostra
um dos livros expostos, que me
passara despercebido. O título do
livro: "A Usina Nuclear do Meu
Pai". Num primeiro momento,
não quis dar trela, temendo uma
maluquice qualquer, e tratei de
seguir caminho.
Andei uns 20 metros, pensei um
pouco e estanquei. Resolvi voltar
para comprar o livro. Estranha
coincidência. O sujeito não me conhecia; visivelmente não era um
leitor de jornais ou um interessado em temas econômicos. Mesmo
na hipótese remota de que tivesse
me reconhecido, nunca poderia
saber que o meu pai foi o negociador do acordo nuclear Brasil-Alemanha e o condutor do programa
nuclear brasileiro nos anos 70.
O leitor provavelmente pouco
ou nada sabe a esse respeito. Em
1975, durante o governo Geisel, o
Brasil iniciou um programa nuclear em cooperação com a Alemanha Ocidental. O programa tinha finalidades pacíficas, mas era
ambicioso: envolvia a transferência e a absorção de tecnologias sofisticadas e sensíveis, a construção
de uma série de usinas nucleares
para geração de energia elétrica,
a produção de equipamentos em
território nacional e o domínio
pelo Brasil do ciclo completo do
combustível nuclear, entre outros
aspectos. Apesar da oposição cerrada dos Estados Unidos e da
União Soviética, o Brasil e a Alemanha foram adiante. O meu pai
estava à frente do processo pelo
lado brasileiro.
O programa se desenvolveu
conforme o planejado nos primeiros anos. Porém, no governo Figueiredo, com a crise da dívida
externa e as dificuldades financeiras do país, os planos teuto-brasileiros começaram a parecer
ambiciosos demais. Ao mesmo
tempo, a necessidade de buscar
socorro financeiro em Washington abriu espaço para que o governo dos EUA minasse o programa nuclear brasileiro. O programa foi sofrendo sucessivos cortes e
adiamentos. O meu pai acabou
pedindo demissão e voltou à sua
casa, o Itamaraty, onde ainda desempenharia tarefas importantes
nas negociações comerciais do
Gatt (o antecessor da OMC) e nas
Nações Unidas, como representante brasileiro. Morreu em 1994,
há quase dez anos, repentinamente, quando estava ainda em
plena atividade -e aflito com a
crescente subordinação do Brasil
ao chamado Consenso de Washington, aquele conjunto de regras e políticas que os países desenvolvidos não aplicam, mas exportam para os incautos da periferia.
Fiquei cismado. Folheei o livro
(um romance futurista escrito em
1985, cujo enredo começa em
1998) e fiquei na mesma. Contei o
estranho episódio a alguns amigos. Sexta-feira passada foi meu
aniversário, e a minha mãe reuniu os familiares de São Paulo para um jantar. Contei a história
outra vez. E perguntei: está acontecendo alguma coisa na área nuclear? Ninguém sabia de nada.
Desde que meu pai morreu, não
acompanho mais essa questão.
Não voltei ao assunto nem quando o governo Fernando Henrique
Cardoso tomou a decisão de aderir ao discriminatório Tratado de
Não-Proliferação Nuclear, em
1998, abandonando as posições
defendidas pelo Brasil desde que
esse tratado foi proposto, no final
da década de 60.
No domingo, veio a resposta.
Um dos principais jornais dos
EUA, o "Washington Post", publicou em primeira página reportagem que levantou suspeitas da
existência de um programa nuclear de caráter bélico no Brasil. A
reportagem caiu como uma bomba. Desde segunda-feira, o tema
nuclear, que ficara quase sempre
em segundo plano durante todos
esses anos, passou a freqüentar a
primeira página dos principais
jornais brasileiros, não raro como
principal notícia.
O governo dos Estados Unidos
está novamente tentando cercear
a atuação do Brasil nesse terreno.
Porta-vozes do governo Bush, em
declarações anônimas, manifestam o desejo de enquadrar o programa nuclear do Brasil e submetê-lo a controle internacional
mais detalhado. Na segunda-feira, o "Financial Times", de Londres, previu que "o governo de esquerda do Brasil" sofrerá "pressões internacionais crescentes nas
próximas semanas" para permitir inspeções mais completas das
suas instalações nucleares.
O correspondente da Folha em
Nova York transmitiu declarações sintomáticas de um especialista em América Latina do Brookings Institute, um dos principais
"think-tanks" norte-americanos.
Segundo esse especialista, "aparentemente há pessoas na administração Lula que são muito nacionalistas" e têm uma "atitude
típica dos anos 70".
Alguém precisa avisar os nossos
irmãos do Norte de que o Brasil
está tentando mudar. Foi-se o
tempo -esperemos que para não
voltar- em que uma tecnocracia
pró-EUA dava as cartas em praticamente todas as áreas do governo FHC. Estamos levantando a
cabeça outra vez, em matéria nuclear e em outras áreas.
O meu espaço acabou. Mas tudo indica que não faltarão motivos para voltar ao assunto em
breve.
Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve
às quintas-feiras nesta coluna. É autor
do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail -
pnbjr@attglobal.net
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