São Paulo, sábado, 08 de maio de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Farmácia populista

GESNER OLIVEIRA

O programa "Farmácia Popular" deve ser lançado pelo governo nos próximos dias, depois de um período de gestação de 16 meses. Pode ser uma boa idéia de marketing, mas é uma péssima proposta de política pública.
Segundo as informações disponíveis -os detalhes do programa têm sido mantidos a sete chaves-, o projeto será implementado pelo governo federal em parceria com os governos estaduais, municipais e organizações não-governamentais com a finalidade de montar uma rede de "farmácias populares" que forneçam um conjunto específico de medicamentos a preços mais baixos. Em uma fase inicial, seriam instalados pontos-de-venda nas cidades de Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador.
Quem poderia ser contra a idéia de vender remédio barato? Quem não se sensibilizou com as cenas do programa na televisão do PT durante a campanha presidencial em 2002, que mostravam o drama de uma mãe trabalhadora sem dinheiro para comprar medicamentos para sua filha doente? O problema do acesso ao medicamento em um país com tanta pobreza como o Brasil existe e é grave, mas o "Farmácia Popular" não é a solução.
Aliás, para a maioria dos problemas sociais, não é necessário inventar uma nova fórmula, muito menos um novo logotipo. É preciso corrigir e aprofundar o que já existe, conforme enfatizou corretamente o jornalista Gilberto Dimenstein em palestra realizada ontem sobre políticas de emprego, mas que vale para o conjunto das políticas públicas.
O "Farmácia Popular" representa flagrante violação ao princípio constitucional de acesso integral, universal e gratuito aos serviços de saúde por meio do SUS (Sistema Único de Saúde). Aquilo que o SUS deve distribuir de graça será agora desviado e cobrado pelo "Farmácia Popular".
O SUS já contempla a assistência farmacêutica mediante mecanismos específicos para a farmácia básica, os medicamentos de alto custo e os programas estratégicos (diabete, Aids e hipertensão). É evidente que há muito a ser feito para corrigir e melhorar o sistema. Quem já acordou de madrugada e enfrentou horas de fila para conseguir um medicamento sabe bem o que é isso.
Mas por que não melhorar o que já existe? Não faz o menor sentido criar outro programa de distribuição de medicamentos, desperdiçando recursos escassos. Isso contraria a própria lógica da utilização do poder de compra do Estado para obter remédios mais baratos e poder repassar os ganhos para o consumidor. Programas dessa natureza pressupõem a centralização, e não a dispersão de esforços.
Além disso, os laboratórios oficiais que deverão fornecer ao "Farmácia Popular" recebem isenções para garantir um custo reduzido, visando o fornecimento a quem não tem condições de pagar e, portanto, depende do SUS. Mas agora esses produtos serão vendidos à população pelo "Farmácia Popular".
As distorções não param por aí. Além de desviar recursos que deveriam ser canalizados para o SUS, o Estado vai incorrer nos custos de comercialização. Isso justamente no setor de farmácias, que é sabidamente marcado por um excesso de pontos-de-venda. Mediante o desvirtuamento de subsídios que deveriam servir à distribuição gratuita de medicamentos, o "Farmácia Popular" constituirá, na prática, uma concorrência desleal no mercado de drogarias.
Se o objetivo é aumentar a concorrência na venda de medicamentos, a opção dos genéricos já existe e é mais eficiente. O desenvolvimento de um segmento de genéricos aumenta a competição e reduz os preços. No Brasil, os preços dos genéricos são pelo menos 35% inferiores aos medicamentos de marca. Atualmente os genéricos representam cerca de 10% do mercado. Nos EUA essa participação chega a quase 40%.
A expansão dos genéricos no Brasil não precisa de subsídio ou da invenção de um novo programa. Mas certamente é necessário oferecer informação e orientação aos consumidores e às categorias profissionais envolvidas, sobretudo aos médicos e farmacêuticos. No entanto o genérico parece ter se transformado em assunto proibido no governo federal pela sua associação com o governo anterior.
Os problemas nacionais são demasiadamente graves para que uma administração se dê ao luxo de abandonar experiências bem-sucedidas. Por isso mesmo é inaceitável que a perspectiva da política pública seja substituída por uma peça publicitária.


Gesner Oliveira, 47, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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