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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Olhando os grandes de perto

RUBENS RICUPERO

Na véspera de Evian, um veterano estadista, que no passado governou poderoso país europeu, dizia-me que a reunião do G8 só teria significado pelas percepções dos participantes a respeito de três questões: a divisão da Europa, o relançamento do processo de paz em Israel e a estagnação da economia mundial. Não que ele esperasse algo de expressivo a esse respeito no comunicado oficial ou mesmo no debate coletivo. Seria mais matéria das convicções íntimas que se formariam a partir das conversas bilaterais reservadas.
Quanto ao primeiro ponto, tudo se resumia a saber se o presidente americano deixaria a reunião com a impressão de que poderia continuar a contar com a divisão dos europeus no Iraque e outros assuntos, o que lhe parecia mais que provável. Em relação ao conflito israelense-palestino, a dúvida mudava de lado e consistia na capacidade que teria o presidente Bush de convencer os interlocutores de que suas intenções eram sérias na busca de solução para o impasse no Oriente Médio. No que se refere à economia, seria preciso verificar se o recente aumento da preocupação com a quase estagnação, até sinais de deflação em certos países, levaria todos a coordenarem resposta coletiva.
Decorrida da reunião menos de uma semana, há fatos de peso a registrar nos dois últimos temas, os únicos nos quais se poderia razoavelmente imaginar algum movimento imediato. A propósito das emboscadas que se preparam no caminho da paz entre palestinos e israelenses, é cabível exprimir todos os temores e ceticismo do mundo. Só não se pode negar que, antes dos encontros no Egito e na Jordânia, não existia um processo de paz e agora existe. Processo que, no caso de Oslo, havia sido liquidado pelo próprio Sharon, conforme ele se orgulhava de proclamar.
Pertence à mesma categoria das realidades tangíveis, para diferenciá-las das meras intenções, a decisão do Banco Central Europeu de cortar os juros em 0,50 ponto percentual, reduzindo de 2,5% a 2% a taxa básica (anual, para inveja dos brasileiros). Embora tardia talvez, a medida deve injetar alguma adrenalina nas combalidas veias da economia da Europa, ajudando-a não só a crescer mas também a combater a excessiva valorização do euro perante o dólar.
Não se observam mudanças, ao contrário, no outro domínio, o das concepções contrastantes sobre o papel a que poderia aspirar uma Europa unida na edificação de um multipolarismo autêntico. Continuam aqui os europeus tão divididos como sempre estiveram. Em Londres, o Instituto de Estudos Estratégicos acaba de acusar de "reumatismo estratégico" líderes como Chirac, exortando-os a aprender a lição da realidade: o máximo hoje possível seria um unipolarismo "administrado", quer dizer, moderado pela Europa. Aliás, nesse particular, a reunião de Evian não inovou em nada, pois sua própria realização, com a presença -reduzida ao mínimo- de Bush, só se tornou possível porque antes a França, a Alemanha e a Rússia haviam deixado espaço livre à adoção pelo Conselho de Segurança da nova resolução sobre o Iraque. Ações táticas como essas, a alternância de avanços e recuos, são tudo o que resta ao alcance desses países enquanto não conseguirem superar as três limitações a uma estratégia efetiva de longo prazo: a anemia do crescimento econômico, a defasagem tecnológica de armamentos, a desunião diplomática no seio da Europa ampliada.
Se, depois do Iraque, faltava ainda uma prova de que os EUA sozinhos são os únicos com poder de descongelar os problemas encruados, ela foi dada de forma categórica nas imagens de Sharm-el-Sheik e de Aquaba: Bush, em esplêndido isolamento -coadjuvado pelo Egito e Jordânia- como mestre-de-cerimônias entre Sharon e o palestino escolhido para substituir Arafat, de acordo com a exigência americana. Ninguém mais, nem a ONU, nem a Europa, nem a Rússia. É verdade que isso não é novo e vem de longe. Foram Kissinger e sua "diplomacia de ponte aérea" que puseram fim à guerra de 1967. Deve-se ao envolvimento de Jimmy Carter a paz de 1978 entre Begin e Sadat, sucesso que Clinton esteve perto de renovar, no fim de seu mandato. O que agora é novo é o engajamento pessoal de Bush, a liquidação do Iraque como líder dos opositores à paz, o enquadramento da Síria e do Irã e o afastamento de Arafat, embora se possa dizer que este último excluiu-se a si mesmo, ao recusar o acordo mediado por Clinton. Resta a ver se essa exclusão não criará mais problemas do que resolve e se Sharon tem vocação pacificadora análoga à dos chefes de guerra reconvertidos que o precederam, Begin e Rabin.
A respeito da economia, ao permitirem que o dólar perdesse, ao longo dos últimos 12 meses, cerca de 30% do seu valor relativo às outras moedas de referência, os americanos estão obrigando europeus e japoneses a acordar da letargia com baldes de água gelada. A depreciação competitiva do dólar destrói as últimas ilusões de que a Europa e o Japão continuassem a crescer (pouco) na base da demanda por importações do mercado norte-americano. Obriga, ao mesmo tempo, essas duas enormes economias a estimular sua demanda doméstica, o que lhes permitiria expandir-se sem a atual dependência exclusiva da economia dos EUA. A estratégia é correta, mas, para dar certo, depende de reajustes tectônicos nos gigantescos desequilíbrios macroeconômicos entre os três grandes, com riscos de sobrarem estilhaços para todos os lados.
Por falar em grandes, comecei o artigo com a intenção de contar minhas impressões da reunião do G8, à qual acompanhei o secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Daí a escolha do título. Fui escrevendo sobre a substância e acabou faltando-me espaço. Basta que lhe confidencie, caro leitor, que, vistos de perto, os grandes não são tão grandes. Quanto às perspectivas esboçadas em meus comentários, ouso pensar que contêm alguma esperança bruxoleante e débil. Dir-se-á que esperança resignada desse tipo é de pouca monta, como se não existisse. É o que sugere um poema do austríaco Erich Fried, que citei várias vezes, sempre na tradução de Celeste A. Galeão. O poeta pergunta a três pedras do rio quanto tempo pode viver sem esperança. A primeira diz que tantos anos quanto os minutos em que possa viver sem respirar. A segunda julga que tanto tempo quanto queira viver sem esperança. A terceira ri-se e responde: "Isso depende do que você ainda / chama vida / quando sua esperança já está morta".


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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