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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Juros e câmbio: as armadilhas continuam

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

O artigo "Uma reflexão sobre a natureza da inflação contemporânea", escrito por Luiz Gonzaga Belluzzo e por mim em dezembro de 1984 (antes do Plano Cruzado), contém algumas considerações relevantes que vale a pena revisitar (as referências são extraídas do livro organizado por José Márcio Rego: "Inflação Inercial, Teorias sobre Inflação e Plano Cruzado", ed. Paz & Terra, RJ, 1986).
Na introdução (pág. 47 op cit), dizíamos: "Nossa hipótese é que os supostos keynesianos originais sobre a inter-relação e o comportamento dos mercados (spot e futuro) foram profundamente alterados, primeiro pela decadência e depois pela ruptura do sistema monetário internacional, cujos fatos maiores foram a substituição das taxas de câmbio fixas por taxas flutuantes, a endogenização do dinheiro e sua internacionalização sob o signo do capital bancário privado. (...) Desse modo, tanto a inflação passada como a esperada estão embutidas no cálculo prospectivo, menos pelo lado da noção tradicional de "fluxos de oferta" e muito mais pelo lado dos estoques e valores de capital" (pág. 55 op cit).
Traduzindo para a linguagem comum: o mercado financeiro está menos preocupado com a "meta de inflação" -que indicaria os preços futuros de oferta no mercado de bens e serviços- do que com a valorização e a desvalorização do seu patrimônio e com a possibilidade de realizar ganhos de arbitragem na intermediação financeira. O Banco Central, ao usar a meta, supostamente deveria estar "olhando para a frente", mas, na verdade, parece mais preocupado com "o retrovisor" (a inflação passada). A única explicação racional (e não apenas ideológica) para essa atitude estaria no temor de ser atropelado pelo mercado de câmbio e pelo movimento de capitais.
Belluzzo e eu afirmávamos (à pág. 56 op cit): "A taxa de juros calculada no mercado monetário passa a embutir o "spread" de risco, que exprime a incerteza crescente em relação aos contratos futuros de câmbio e em relação à liquidação de contratos passados. (...). É nessa circunstância que a elevação das taxas de juros não corresponde mais a uma elevação do prêmio à renúncia da liquidez, mas a um prêmio de risco sobre a desvalorização provável da riqueza passada" (pág. 57 op cit).
É curioso que, no discurso oficial do BC (atas do Copom) sobre a manutenção dos juros altos, não apareça nem uma palavra sobre valorização e desvalorização da riqueza mobiliária privada (que tem como contrapartida o valor da dívida pública). Tampouco se menciona a taxa de câmbio como variável-chave para a avaliação e para a demanda de ativos dolarizados a pretexto de que o câmbio é "livre" e encontrará o seu ponto de equilíbrio (?). A atual política monetária é impotente para determinar a taxa de câmbio real e, embora possa influir na nominal (estando hoje, aparentemente, buscando um "piso" de cerca de R$ 3 por US$ 1), tampouco consegue estabilizá-la, dada a flutuação na entrada e saída de capitais e a mudança nas posições "compradas" e "vendidas" nos mercados especulativos.
Não é politicamente aceitável que o Estado brasileiro seja destruído a pretexto de um "ajuste fiscal" crescente, impossível de manter com a atual taxa de juros (a Selic) e um declínio projetado do PIB para o segundo semestre. Além disso, estamos amarrados a um acordo com o FMI que estabelece limites para a relação dívida/PIB, o que torna a política de juros básicos altos e a política fiscal inteiramente contraditórias. Tampouco é aceitável que o emprego dos trabalhadores seja mandado para o "buraco negro" da recessão e agora (de novo!) que a reposição dos salários seja combatida para evitar a "inflação inercial" como se se tratasse do velho modelo de "conflito distributivo" da PUC/RJ (a propósito, ver Franklin Serrano: "Inflação Inercial e Desindexação Neutra", op cit). Em alguma hora, portanto, serão impostas decisões políticas internas "arriscadas", já que não existe nenhuma decisão técnica neutra ou de equilíbrio para as taxas de juros e o câmbio. Tais decisões devem levar em conta as atuais contradições e conflitos, sem pretensões de apelar para um Banco Central independente, que não esteja sujeito a pressões (a recente resposta dos alemães e agora do Banco Central Europeu é o quê?).
Essas contradições decorrem da interdependência de uma série de variáveis, sobretudo juros e câmbio. A manutenção de taxas de juros altas e crescentes em termos reais melhora a posição dos rentistas, mas piora a situação dos endividados (setor público, empresas e famílias), tornando o risco de inadimplência e de restrição no crédito interno uma ameaça permanente. A forte queda dos juros nos EUA e a desvalorização do dólar no mercado internacional, assim como a arbitragem de risco em dólares, com juros altos em reais superiores ao risco-país, podem atrair temporariamente capitais de curto prazo, valorizar os títulos da "dívida pública velha" no mercado internacional e facilitar a rolagem da dívida externa privada. A entrada líquida de capitais melhora a situação patrimonial de algumas empresas e bancos, mas sobrevaloriza a moeda local e instabiliza as expectativas sobre receitas de exportação, gastos com importações e rendas remetidas para o exterior. Compromete, portanto, o desejado "ajuste positivo" da balança comercial e da conta de transações correntes. Por outro lado, continua a instabilidade financeira, e a conta de capitais pode ser revertida a qualquer momento com uma mudança na avaliação de risco internacional, nas taxas de juros e nas taxas de câmbio internacional.
Já que não há "equilíbrio macroeconômico", pretendo passar, no próximo artigo, à discussão sobre os pedregosos caminhos do desenvolvimento. Quem sabe, assim, ajudamos a preparar o futuro do qual não somos "proprietários" nem pelo nosso "saber" nem pela nossa "herança" (maldita ou não).


Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

Internet:
www.abordo.com.br/mctavares

E-mail -
mctavares@abordo.com.br


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