São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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LUÍS NASSIF

Lupicínio, o rei da fossa

Cheguei a São Paulo em 1970 e fui morar com meus avós na vila Maria. Um ano depois chegou o meu amigo Zé Grandão, o jornalista José Roberto Alencar, filho do seu Zé Alencar do Doces Gigante, de Santa Rita de Caldas, e foi morar na rua Tabatinguera, entre a praça da Sé e a baixada do Glicério.
O prédio do Zé era um barato total e musical. Um andar abaixo morava a dupla Dom e Ravel, aquela do "Eu Te Amo, Meu Brasil". Alguns andares acima, o seu Zé Guimarães, negão retinto e bom de prosa, que nos passou a conversa dizendo-se autor do "Pequenino Grão de Areia" (do Paulo Soledade), de "Isaura" (de Herivelto Martins) e, com pseudônimo, de livrinhos policiais que se vendiam às centenas de milhares nas bancas. A gente fez um pacto de silêncio sobre o ocorrido, para evitar que as inúmeras vítimas das "cordas" que dávamos pudessem se vingar dos dois patos mineiros que caíram no conto-do-compositor-popular. Trinta anos depois, acho que os nossos arquivos podem ser parcialmente liberados.
Dei essa volta toda para chegar ao boteco do térreo do prédio, onde seu Zé Guimarães dava canja e onde conhecemos a Zezé, senhora distinta e doce, freqüentadora da baixada. Pois a dona Zezé, além do repertório impecável de zona, nos confessou, em uma sexta-feira particularmente musical, que tinha morado por alguns tempos em Porto Alegre, levada por Lupicínio Rodrigues para cantar em sua casa noturna. Conheceu Lupi (como era chamado) na noite paulistana, ele gostou de sua voz e de seu corpinho de mocinha nova, e a levou para o sul. Foi uma revelação tão surpreendente, tão impactante para nós, que imediatamente "tombamos" dona Zezé e, num assomo de ternura, afaguei os cabelos bonitos daquele novo ícone do nosso cancioneiro popular. E a noite teria terminado envolvida pelo clima de ternura dos bêbados, não fosse a circunstância de o meu afago ter derrubado a sua peruca. Mesmo careca e madurona, dona Zezé era um doce.
Lupicínio já era meu conhecido por ter emplacado duas músicas no repertório seletíssimo da dona Tereza, minha mãe: "Felicidade" e "Nervos de Aço" ("Você sabe o que é ter um amor, meu senhor / ter loucura por uma mulher"). Nunca soube se dona Tereza cantava "Felicidade" com a segunda voz, ou se foi Caetano Veloso quem gravou. Nos anos 60, Elza Soares explodira no Brasil inteiro regravando "Se Acaso Você Chegasse" (que foi lançada e lançou Ciro Monteiro nos anos 40).
Mas seu repertório era basicamente de zona, retratando fielmente um tipo de boêmio padrão e, àquela altura, quase em extinção, aquele que amava a fossa, que tratava os botecos e a madrugada a sério, apaixonando-se pelas mulheres da noite e fazendo absoluta questão de ser rejeitado, para ter álibi para cantar Lupicínio.
A recuperação de Lupicínio começou com a regravação de Paulinho da Viola para "Nervos de Aço" no final dos anos 60. Mas o grande salto foi um programa na TV Tupi, em 1972, produzido pelo Fernando Faro com João Gilberto e a nova geração de baianos Caetano, Gil, Gal e Bethânia, cuja gravação fui cobrir pela "Veja".
Foi um show extraordinário, que tinha de ser interrompido de 15 em 15 minutos por conta da salivação de Caetano e Gil contemplando o mestre. No show, João Gilberto interpretou "Quem Há de Dizer" ("Quem há de dizer / que quem vocês estão vendo / naquela mesa bebendo / é o meu querido amor"). Pela primeira vez, para a nossa geração, Lupicínio se revelava um clássico imbatível e intemporal.
O show deflagrou uma furiosa busca do repertório de Lupi, auxiliada pelo fascículo da Abril. Passamos não apenas a comprar os discos de Jamelão, seu grande intérprete, como a frequentar sebos atrás das gravações de Francisco Alves, de Linda Batista -a grande Linda, que meu amigo Lineu reputa, com razão, maior que Dalva e Isaurinha, e que gravou o maior sucesso de Lupi, "Vingança" ("Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram / que te encontraram chorando, bebendo na mesa de um bar").
Nos anos 40, Francisco Alves o consagrou cantando "Nervos de Aço", "Esses Moços" ("Esses moços, pobres moços / ah, se soubessem o que eu sei"), "Quem Há de Dizer" (com seu grande parceiro Alcides Gonçalves) e "Cadeira Vazia" ("Entra, meu amor, fica à vontade / me diz com sinceridade..."). Seu clássico "Felicidade" foi gravado em 1947 pelo Quitandinha Serenaders, conjunto vocal que tinha como "crooner" o gaúcho Alberto Ruschel, o maior galã que o cinema nacional teve até o aparecimento de Anselmo Duarte.
Embora gaúcho até a raiz dos cabelos, Lupicínio jamais fez música gaúcha. Passou pela toada mineira de "Felicidade", pelo samba-canção, mas fez, acima de tudo, a música de Lupicínio.
E acabei de lembrar que faz muitos anos que não tenho notícias do Cláudio Negão, sujeito enorme, músico profissional que andava de muletas e que nos ensinou grande parte no repertório de Lupicínio nas madrugadas de Poços, quando o Bar ao Ponto recebia as mocinhas da Jovita e seus velhos boêmios apaixonados.
Nem a zona de Poços escapou de sua influência.


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