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LUÍS NASSIF
Lupicínio, o rei da fossa
Cheguei a São Paulo em
1970 e fui morar com meus
avós na vila Maria. Um ano depois chegou o meu amigo Zé
Grandão, o jornalista José Roberto Alencar, filho do seu Zé
Alencar do Doces Gigante, de
Santa Rita de Caldas, e foi morar na rua Tabatinguera, entre a
praça da Sé e a baixada do Glicério.
O prédio do Zé era um barato
total e musical. Um andar abaixo morava a dupla Dom e Ravel,
aquela do "Eu Te Amo, Meu
Brasil". Alguns andares acima, o
seu Zé Guimarães, negão retinto
e bom de prosa, que nos passou a
conversa dizendo-se autor do
"Pequenino Grão de Areia" (do
Paulo Soledade), de "Isaura" (de
Herivelto Martins) e, com pseudônimo, de livrinhos policiais
que se vendiam às centenas de
milhares nas bancas. A gente fez
um pacto de silêncio sobre o
ocorrido, para evitar que as inúmeras vítimas das "cordas" que
dávamos pudessem se vingar dos
dois patos mineiros que caíram
no conto-do-compositor-popular. Trinta anos depois, acho que
os nossos arquivos podem ser
parcialmente liberados.
Dei essa volta toda para chegar
ao boteco do térreo do prédio,
onde seu Zé Guimarães dava
canja e onde conhecemos a Zezé,
senhora distinta e doce, freqüentadora da baixada. Pois a dona
Zezé, além do repertório impecável de zona, nos confessou, em
uma sexta-feira particularmente
musical, que tinha morado por
alguns tempos em Porto Alegre,
levada por Lupicínio Rodrigues
para cantar em sua casa noturna. Conheceu Lupi (como era
chamado) na noite paulistana,
ele gostou de sua voz e de seu
corpinho de mocinha nova, e a
levou para o sul. Foi uma revelação tão surpreendente, tão impactante para nós, que imediatamente "tombamos" dona Zezé
e, num assomo de ternura, afaguei os cabelos bonitos daquele
novo ícone do nosso cancioneiro
popular. E a noite teria terminado envolvida pelo clima de ternura dos bêbados, não fosse a
circunstância de o meu afago ter
derrubado a sua peruca. Mesmo
careca e madurona, dona Zezé
era um doce.
Lupicínio já era meu conhecido por ter emplacado duas músicas no repertório seletíssimo da
dona Tereza, minha mãe: "Felicidade" e "Nervos de Aço" ("Você sabe o que é ter um amor, meu
senhor / ter loucura por uma
mulher"). Nunca soube se dona
Tereza cantava "Felicidade"
com a segunda voz, ou se foi
Caetano Veloso quem gravou.
Nos anos 60, Elza Soares explodira no Brasil inteiro regravando "Se Acaso Você Chegasse"
(que foi lançada e lançou Ciro
Monteiro nos anos 40).
Mas seu repertório era basicamente de zona, retratando fielmente um tipo de boêmio padrão e, àquela altura, quase em
extinção, aquele que amava a
fossa, que tratava os botecos e a
madrugada a sério, apaixonando-se pelas mulheres da noite e
fazendo absoluta questão de ser
rejeitado, para ter álibi para
cantar Lupicínio.
A recuperação de Lupicínio começou com a regravação de
Paulinho da Viola para "Nervos
de Aço" no final dos anos 60.
Mas o grande salto foi um programa na TV Tupi, em 1972,
produzido pelo Fernando Faro
com João Gilberto e a nova geração de baianos Caetano, Gil, Gal
e Bethânia, cuja gravação fui cobrir pela "Veja".
Foi um show extraordinário,
que tinha de ser interrompido de
15 em 15 minutos por conta da
salivação de Caetano e Gil contemplando o mestre. No show,
João Gilberto interpretou
"Quem Há de Dizer" ("Quem há
de dizer / que quem vocês estão
vendo / naquela mesa bebendo /
é o meu querido amor"). Pela
primeira vez, para a nossa geração, Lupicínio se revelava um
clássico imbatível e intemporal.
O show deflagrou uma furiosa
busca do repertório de Lupi, auxiliada pelo fascículo da Abril.
Passamos não apenas a comprar
os discos de Jamelão, seu grande
intérprete, como a frequentar sebos atrás das gravações de Francisco Alves, de Linda Batista -a
grande Linda, que meu amigo
Lineu reputa, com razão, maior
que Dalva e Isaurinha, e que
gravou o maior sucesso de Lupi,
"Vingança" ("Eu gostei tanto,
tanto, quando me contaram /
que te encontraram chorando,
bebendo na mesa de um bar").
Nos anos 40, Francisco Alves o
consagrou cantando "Nervos de
Aço", "Esses Moços" ("Esses moços, pobres moços / ah, se soubessem o que eu sei"), "Quem Há de
Dizer" (com seu grande parceiro
Alcides Gonçalves) e "Cadeira
Vazia" ("Entra, meu amor, fica
à vontade / me diz com sinceridade..."). Seu clássico "Felicidade" foi gravado em 1947 pelo
Quitandinha Serenaders, conjunto vocal que tinha como
"crooner" o gaúcho Alberto Ruschel, o maior galã que o cinema
nacional teve até o aparecimento de Anselmo Duarte.
Embora gaúcho até a raiz dos
cabelos, Lupicínio jamais fez
música gaúcha. Passou pela toada mineira de "Felicidade", pelo
samba-canção, mas fez, acima
de tudo, a música de Lupicínio.
E acabei de lembrar que faz
muitos anos que não tenho notícias do Cláudio Negão, sujeito
enorme, músico profissional que
andava de muletas e que nos ensinou grande parte no repertório
de Lupicínio nas madrugadas de
Poços, quando o Bar ao Ponto
recebia as mocinhas da Jovita e
seus velhos boêmios apaixonados.
Nem a zona de Poços escapou
de sua influência.
Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br
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