São Paulo, segunda-feira, 08 de julho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Ser contra a Alca não é ser contra o capital externo

PAULO R. FELDMANN

O futuro presidente da República vai se deparar logo ao início de sua gestão, em 2003, com um problema para o qual ele precisará definir uma posição quase que imediata. Trata-se da participação brasileira na Alca (Área de Livre Comércio das Américas), a proposta norte-americana de um mercado aberto e sem barreiras entre todos os países da América, com exceção de Cuba, cuja abrangência é de US$ 11 trilhões e 800 milhões de consumidores.
Nas circunstâncias atuais, em que tanto se fala na necessidade de rever a atual política econômica, poucos assuntos são tão importantes quanto a discussão acerca da nossa participação na futura Alca. Veja-se, por exemplo, o caso da discussão da necessidade de o país possuir uma política industrial, que é aparentemente um consenso entre todos os candidatos a presidente da República. Não há como discutir seriamente uma política industrial para o Brasil sem que antes se defina se vamos ou não participar da Alca.
Nesse sentido é importante deixar bem claro algumas características da Alca que, apesar de serem conhecidas, só o são para os poucos que já se debruçaram sobre seus princípios e regras divulgados: a Alca será bem diferente da União Européia, pois essa visava a integração via ajuda aos países mais pobres, como Portugal e Grécia, o que efetivamente está acontecendo; a Alca visa unificar os mercados, mas não integrar, e, principalmente, não há nenhum objetivo, explicito ou não, de ajudar os países mais pobres da América Latina.
A Alca não tem entre suas metas o desenvolvimento econômico ou social dos países do continente, mas simplesmente visa propiciar às empresas da região a possibilidade de atuar em todo o continente com vantagens superiores. Ora, isso beneficiará preponderantemente as grandes empresas e principalmente as norte-americanas, mas sobretudo aquelas que ainda não possuem operações em nosso país.
Não há nenhuma obrigação ou compromisso internacional que imponha que o Brasil deva participar da Alca ou de qualquer outro acordo como a União Européia. Portanto trata-se de uma decisão soberana do país. Consequentemente compete à sociedade brasileira e a seus representantes avaliar as conveniências de tal participação. Para isso, deveria estar havendo no país uma ampla discussão do tema -o que, sabemos, está longe de acontecer. No entanto as propostas de liberalização dos mercados nos vários países da América devem estar colocadas pelo menos até o início de 2003, para então, imediatamente, se iniciar o processo de eliminação paulatina das tarifas de importação.
Quando a idéia da Alca foi lançada pela primeira vez, em 1994, seus defensores preconizavam que a redução das tarifas beneficiaria os produtos brasileiros que então sofriam com a proteção americana, tais como suco de laranja, siderúrgicos, aço, fumo, calçados e outros. Argumentava-se que os setores da economia brasileira que seriam prejudicados eram setores que já eram dominados por empresas estrangeiras, como informática e produtos estrangeiros, e que, portanto, a Alca poderia prejudicar algumas empresas, mas seria muito benéfica aos consumidores. Mesmo que isso fosse verdade, significa que as exportações brasileiras teriam que se concentrar cada vez mais em produtos primários ou com pouca industrialização, enquanto estaríamos abdicando definitivamente de atuarmos em setores que envolvessem um mínimo de agregação industrial ou conteúdo tecnológico.
Ora, está evidente neste início de século 21 que as nações efetivamente avançadas são aquelas cujas exportações são constituídas por produtos com alto conteúdo tecnológico, que é o que caracteriza, por exemplo, EUA, Japão ou Alemanha. Enquanto nações pobres são aquelas que, quando conseguem exportar, o fazem por meio de seus produtos agrícolas ou minerais, ou seja, as famosas commodities. É esse o destino que queremos consagrar para as nossas exportações com a Alca? Vamos definitivamente abrir mão de exportarmos produtos de alta tecnologia?
A Alca, sem dúvida, tornará o produto norte-americano ainda mais competitivo dentro do mercado brasileiro. Para nós, a primeira consequência disso será que o atual processo de desnacionalização que vem ocorrendo nos setores industriais será ainda mais acentuado. É isso o que queremos? No entanto o número de empresas estrangeiras com intenção de se instalar no Brasil -e que evidentemente aqui geram empregos- também tenderá a diminuir drasticamente, pois nosso mercado passará a ser servido por produtos importados. Ironicamente a Alca afastará o capital estrangeiro de nosso país. Por isso é importante frisar que ser contra a Alca não significa ser contra o capital estrangeiro.
A Alca representa uma verdadeira armadilha para o Brasil. Se achamos que vamos agradar ao capital estrangeiro, é justamente o contrário o que estaremos fazendo. Que vantagens ele terá em vir para cá gerar novas fábricas e empresas se os respectivos produtos aqui chegarão de qualquer forma, via importação? Se não vamos conseguir atrair o capital externo, por que vamos abrir mão de um dos mais importantes patrimônios que possuímos, que é o nosso mercado interno?
Após 18 meses do início do governo de George W. Bush, as linhas mestras da política econômica e comercial norte-americana se fazem totalmente claras: medidas de proteção a setores da economia dos EUA serão adotadas sempre que houver alguma ameaça que signifique perda de alguma parcela do mercado americano para algum fabricante ou produtor estrangeiro. Essa prática ficou tão evidente que hoje o presidente Bush nem sequer adota o discurso hipócrita do livre comércio que ainda utilizava há alguns meses. Não há mais ilusões depois dos subsídios ao aço americano e dos US$ 173 bilhões destinados aos agricultores norte-americanos. A justificativa é que os EUA estão agindo em defesa do seu interesse nacional. Por que não fazermos o mesmo?


Paulo R. Feldmann, 53, é professor da Faculdade de Economia da USP, membro da coordenação da Cives (Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania) e diretor do Centro do Comércio da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Foi presidente da Eletropaulo (1995/96).


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