São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O duplo desafio, urgente

LUCIANO COUTINHO

A evolução extraordinariamente favorável da economia mundial desde o final de 2002 até o presente momento tende a mudar para pior. O ciclo do juro baixo e negativo acabou e a principal economia do globo, a dos EUA, precisa passar por ajustes incontornáveis. A provável vitória de John Kerry nas próximas eleições deve colocar em marcha um programa de redução do déficit fiscal, e os efeitos da progressiva elevação da taxa de juros pelo Fed nos próximos meses tendem a esfriar a construção civil nos EUA (após três anos consecutivos de superaquecimento). Parece inevitável que a economia brasileira deva enfrentar um período mais turbulento nos próximos meses. Mas isso não significa necessariamente que haverá uma grave crise mundial, capaz de nocautear o nosso crescimento.
É perfeitamente possível e, mais que isso, provável que prevaleça um quadro de coordenação global em prol do crescimento. Desde logo a China já iniciou uma desaceleração planejada da sua taxa de crescimento para torná-la sustentável. Isso ajudará a moderar as pressões inflacionárias observadas nos últimos meses sobre os preços das commodities metálicas e agroindustriais. De outro lado, o Japão luta para manter a sua recente recuperação econômica -que ainda depende do desempenho das exportações- e, para isso, o Banco do Japão opera pesadamente adquirindo títulos do Tesouro americano para valorizar o dólar ante o iene. Essas compras, em grande escala (US$ 450 bilhões por ano), ajudam, obviamente, a financiar os déficits fiscal e externo dos EUA. Os tigres asiáticos seguem o exemplo japonês, adquirindo dólares para sustentar taxas de câmbio suficientemente depreciadas que estimulam o dinamismo exportador. Essa simbiose de interesses entre os EUA e a Ásia tende a persistir até que apareçam riscos inflacionários sérios nas economias do extremo leste. Por sua vez, a União Européia parece, finalmente, retomar uma taxa de crescimento mais consistente.
Esse cenário de retomada, ainda que turbulenta, do crescimento global descortina uma chance de ouro para o Brasil completar o robustecimento de sua posição externa e para criar uma base interna de crédito e financiamento. Uma recuperação mais fraca e oscilante do crescimento nos EUA facilita ao Fed cumprir a promessa de que subirá a taxa de juros de forma gradualista. As pressões inflacionárias sobre as commodities poderão refluir (com o auxílio da desaceleração chinesa). Nesse quadro, a economia brasileira continuaria desfrutando de um estado de liquidez global relativamente folgado e de um comércio mundial ainda em crescimento -embora com preços menos favoráveis. Assim, a sustentação de um elevado saldo comercial nos próximos anos, condição sine qua non para a criação de um colchão protetor de reservas de divisas, requer o deslanche urgente de investimentos substanciais de criação de capacidade exportadora e de expansão da oferta doméstica para evitar o acúmulo de pressões inflacionárias. Investimentos públicos e privados de grande escala são também urgentes em infra-estruturas -notadamente transportes, portos e energia. O volume necessário de inversões adicionais monta a US$ 16 bilhões por ano (3% do PIB) para assegurar a sustentabilidade da expansão.
O desafio mais complexo para essa transição organizada reside na capacidade de estruturar "funding" adequado e suficiente para viabilizar esses investimentos. Mais além da mobilização das instituições financeiras federais (BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNB e Basa), é essencial que o setor bancário privado possa contribuir adequadamente.
O desenvolvimento do crédito requer três movimentos. Do lado das operações ativas, é necessário melhorar as condições de segurança jurídica das garantias e construir condições adequadas de liquidez (a nova Lei de Falências resolve parte dos problemas, mas ainda há que assegurar confiabilidade às várias formas de securitização). Esses passos permitirão reduzir os riscos de crédito e propiciar a queda substancial dos "spreads", que atualmente inviabilizam a rápida expansão das operações do sistema. Quanto ao lado das operações passivas, parece indispensável incentivar o alongamento voluntário dos prazos dos instrumentos de captação. Todas as formas longas de aplicação (fundos de renda fixa e/ou variável, planos de aposentadoria, seguros, novos instrumentos de emissão privada) deveriam receber um tratamento tributário favorável. Finalmente, o BC deveria cumprir a sua parte liberando gradual e coordenadamente os depósitos compulsórios e as vinculações. Complementarmente um outro conjunto de medidas deveria apoiar o desenvolvimento do mercado de capitais.
Sublinho a urgência desse duplo desafio, a saber: deslanchar os investimentos e construir um novo padrão de financiamento de base doméstica. A demora em concretizá-lo certamente truncará a tão desejada retomada sustentável do desenvolvimento.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).

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