São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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LUÍS NASSIF

O renegado da América

Quando Mike Tyson caiu no quarto assalto, semana retrasada, nocauteado por um adversário desconhecido, celebrou-se o triunfo definitivo da América branca sobre seu filho renegado.
Tyson tem 38 anos. Os mais novos não imaginam o que era Tyson com 20 anos. Se um lutador só deve ser avaliado por sua carreira completa, ele não foi o maior. Se se puder definir períodos de atuação, dos 20 aos 25 anos, talvez um pouco mais, não houve ninguém que se aproximasse de Tyson.
A desproporção entre ele e seus adversários era chocante. Não me lembro de ter assistido a muitas reprises de lutas de Joe Louis. Assisti a algumas de Rocky Marciano e de Floyd Paterson. Assisti quase todas de Muhammad Ali, de George Foreman e dos gigantes que dominaram o cenário dos pesos-pesados nos anos 70. Havia lutas épicas, alguns massacres, mas nada que chegasse perto dos feitos de Tyson na sua fase inicial.
Começava a luta, se você piscasse, não via o final. O soco saía não se sabe como, nem de que lugar, explodia no queixo, na testa, na cabeça do adversário, e ele desabava como uma donzela frágil. E tratava-se de lutadores de 1,90 m a 2,00 m, dos mais fortes homens do planeta.
Os pouco habituados ao boxe viam no ringue apenas um animal cuja força superava qualquer deficiência técnica. Não era só isso. O poder mortífero dos golpes residia na combinação de uma força descomunal e de uma técnica de ataque como jamais se viu na história do boxe.
Nós, os viúvos de Muhammad Ali, nem resistimos muito para admitir que, se tivesse sido possível um mano a mano de ambos, no auge de suas respectivas carreiras, nem Ali teria sido capaz de resistir.
Tyson não era o animal pintado pelo racismo explícito da crítica norte-americana. Lembro-me de uma capa da "Veja" com ele, em fins dos anos 80, em que revelava uma enorme inteligência para a luta. Tinha uma videoteca com os maiores combates da história, era capaz de explicar os segredos de Sugar Ray Robinson, Joe Louis, de Ali, com um discernimento impossível de ser desenvolvido em um primata.
A possibilidade de um vingador branco ou de um vingador negro apolíneo estava tão fora de cogitação que, certa vez, um crítico esportivo norte-americano, em tom de amplo despeito, sugeriu que era exagero chamar Tyson de homem mais forte do mundo. Em alguma favela carioca haveria um negro, forte como ele, e dominando outras técnicas de luta, capaz de vencê-lo.
Mas Tyson era um bruto. Além de bruto, um preto. Além de preto, era feio. Além de feio, era pobre. Não bastava ser pobre: tinha sido resgatado dos esgotos de Nova York. Era detestado pelo establishment norte-americano, que adorava Foreman, e pela contracultura, que cultuava Ali.
Por trás do brutamontes vivia uma criança de rua, frágil, carente e sobrevivente como toda criança de rua. Tyson tinha só uma referência afetiva, seu treinador, que o tirou das ruas e ensinou as manhas do boxe. Ele morreu com Tyson em plena ascensão, antes de poder lhe ensinar as manhas da vida. Aí o mundo despencou sobre ele, e a América branca armou sua vingança.
Montou-se uma história de estupro inverossímil, da mocinha virgem que, inocentemente, vai ao quarto do animal em plena madrugada e é atacada de surpresa. Feita a denúncia de tentativa de estupro, órfão da vida e do seu treinador, Tyson virou o alvo perfeito da opinião pública norte-americana.
Foi preso, derrotado, e ninguém saiu em sua defesa. Não tinha o carisma de Ali, não era o representante da raça negra, como Jack Johnson, o campeão do início do século. Era apenas uma criança de rua, presa fácil dos marginais que povoam o mundo do boxe, das mocinhas espertas, dos linchadores que dominam os movimentos de massa.
Foi derrotado muito antes do nocaute da semana retrasada. Mais tarde, a América branca tentou se redimir absolvendo O.J. Simpson, contra todas as evidências de que assassinara a mulher. Mas ele era bonito, inteligente, um quase branco.
No futuro, quando o tempo dissipar os preconceitos, na memória de todo amante do boxe ficará claro que o Tyson dos cinco primeiros anos de carreira profissional foi o maior lutador que o boxe conheceu.


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