São Paulo, quinta-feira, 08 de novembro de 2001

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LUÍS NASSIF

Justiçamento e selvageria

O justiçamento é próprio de sociedades selvagens. Consiste em fazer justiça com as próprias mãos, em não diferenciar gradação de crimes, em condenar antecipadamente, inibindo toda forma de defesa.
A história está repleta de casos de justiçamento e linchamento. Ainda que o linchado seja réu confesso e impiedoso, o linchador não fica atrás. Ambos se equivalem. Muitas vezes o linchador é pior ainda, posto que sua força é uma brutalidade sem riscos, decorrente do amparo da maioria, protegido por um discurso pretensamente legalista. O pior linchador é o anônimo, o que estimula a vingança selvagem sem se expor, o que explora o sentimento de vingança para se impor perante os seus.
Tome-se o caso de Galdino, o índio pataxó. É possível que tenha sido assassinado com premeditação e requintes de crueldade. É possível que tenha sido vítima de uma brincadeira brutal, que resultou na sua morte. Ambos os casos são crimes, ambos merecem punição, mas de gradação diferente.
Só se vai avaliar corretamente a motivação dando o direito de defesa aos culpados, ouvindo os argumentos da defesa e da acusação, pesando a lógica de cada uma, os antecedentes dos envolvidos, os detalhes do crime.
Quando se mistura justiça com o fantástico show da mídia, essa defesa deixa de existir. Troca-se a análise isenta das provas pelo sensacionalismo e se criam unanimidades que atropelam toda norma de direito individual. Enfatizam-se todas as provas contra os réus, escondem-se ou minimizam-se todos os atenuantes. Expõem-se a dor e a revolta dos familiares da vítima, esconde-se a dor dos familiares dos culpados. Mães e pais desses rapazes são tão vítimas desse episódio quanto os pais do infeliz Galdino. Evita-se qualquer informação que possa "humanizar" os culpados e se criam estereótipos que possam facilitar a unanimidade em torno do fato.
Em toda a cobertura desse episódio, lembro-me de apenas uma reportagem da revista "Veja" falando dos bons antecedentes dos rapazes. Por que se sonega essa informação? Por que esse medo covarde de colocar todos os fatos na mesa? Medo de que a isenção possa ser confundida com a defesa do crime? Medo desse sentimento bestial, que torna o linchador tão parecido e às vezes pior que o criminoso que pretende linchar?
O fim da ditadura marcou o fim das unanimidades. Agora, o brasileiro só é solidário na Copa do Mundo e no linchamento. Qualquer tentativa de se contrapor a essa maioria selvagem é repelida, sob o argumento de que quem não advoga a pena capital advoga a impunidade.

Dos leitores
Recebo do leitor Petrônio Filho, de Brasília, o seguinte e-mail:
"A extravagante tese da acusação é que eles tinham a intenção de matar e cometeram um homicídio triplamente qualificado. Só pessoas muito sectárias podem acreditar que quatro jovens de vida pacata, com bons antecedentes, poderiam se tornar, de um minuto para outro, quatro psicopatas sádicos.
O linchamento da imprensa começou pela Rede Globo. O curioso é que um crime semelhante aconteceu em "O Bem Amado", a primeira novela colorida da TV Globo. O filho do prefeito Odorico Paraguaçu jogou álcool e tocou fogo em um mendigo que dormia na rua. A vítima teve queimaduras e foi tratada pelo médico, representado pelo ator Daniel Filho. Mas o mendigo não foi hospitalizado nem correu risco de vida.
A mesma brincadeira de mau gosto imaginada por Dias Gomes, autor da novela, foi posta em prática pelos quatro jovens, só que com consequências dez vezes mais graves. Se Dias Gomes, um escritor culto e bem-sucedido, se enganou sobre os efeitos do álcool no corpo humano, como não aceitar que quatro jovens ignorantes cometessem o mesmo erro?
Longe de mim sugerir que os jovens sejam absolvidos. Eles têm que pagar pelo que fizeram, como, aliás, estão pagando. Os três que eram maiores de idade estão há quatro anos e meio encarcerados. O que eu não aceito é que se aplique uma pena injusta para satisfazer a sede de sangue da imprensa local.
Quanto à tal promotora, que posa de perseguida, ela está agindo a favor da maré da opinião pública. Isso não requer tanta coragem assim. Não sei quais são seus motivos, mas o fato é que ela conseguiu seus 15 minutos de fama.
A única personagem que agiu com coragem e independência foi a juíza que tentou desclassificar a tese de homicídio intencional".


Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br


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