São Paulo, quinta-feira, 08 de novembro de 2001

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ANÁLISE

Terror e Estado mínimo são o Chernobyl da globalização


ULRICH BECK
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

Os ataques terroristas aos Estados Unidos foram o Chernobyl da globalização. Assim como o desastre na Rússia minou nossa fé na energia nuclear, o dia 11 de setembro expôs a falsa promessa do neoliberalismo.
Os terroristas não apenas expuseram a vulnerabilidade da civilização ocidental. Também mostraram os conflitos que a globalização pode causar. De repente, os axiomas aparentemente irrefutáveis do neoliberalismo -que a economia sobrepujará a política, que o papel do Estado diminuirá- perdem sua força num mundo de riscos globais.
A privatização da segurança da aviação nos Estados Unidos constitui apenas um exemplo, embora bastante simbólico. A vulnerabilidade dos Estados Unidos está na verdade muito ligada a sua filosofia política. Havia muito tempo que se suspeitava de que os Estados Unidos fossem um possível alvo de ataques terroristas. Mas, ao contrário da Europa, a segurança da aviação foi privatizada e confiada a funcionários temporários altamente flexíveis, que ganham menos que empregados de lanchonetes.

Privatização mortífera
É a auto-imagem dos Estados Unidos que cria sua vulnerabilidade. As horríveis imagens de Nova York contêm uma mensagem até então não-decodificada: um país pode se neoliberalizar até a morte.
O neoliberalismo sempre foi uma filosofia de bom tempo, que funciona somente quando não há conflitos ou crises graves. Ele afirma que somente os mercados globalizados, livres de regulamentação e burocracia, podem remediar os males do mundo: desemprego, pobreza, ruptura econômica etc. Hoje, a fé inabalável dos capitalistas fundamentalistas no poder redentor do mercado provou ser uma perigosa ilusão.
Em tempos de crise, o neoliberalismo não tem soluções a oferecer. Verdades fundamentais que foram abandonadas voltam ao primeiro plano. Sem taxação, não pode haver Estado. Sem esfera pública, democracia e sociedade civil, não pode haver legitimidade. E, sem legitimidade, não há segurança. A partir disso, segue-se que sem fóruns legítimos para resolver conflitos nacionais e globais não haverá economia mundial sob forma nenhuma.
O neoliberalismo insistiu que a economia deveria se libertar de modelos nacionais e, no lugar deles, impor regras transnacionais de conduta econômica. Mas ao mesmo tempo assumiu que os governos respeitariam os limites nacionais e o modo antigo de fazer as coisas. Depois de 11 de setembro, os governos redescobriram as possibilidades e o poder da cooperação internacional, por exemplo, para manter a segurança interna. Subitamente, a necessidade do Estado, o antiprincípio do neoliberalismo, é onipresente.

Governo globalizado
Um mandado de prisão europeu, que supera a soberania nacional na aplicação da lei -algo até recentemente impensável-, tornou-se uma possibilidade. Logo poderemos ver uma convergência semelhante na direção de regras compartilhadas e estruturas econômicas.
Nesse sentido, o terrorismo atingiu exatamente o oposto do que pretendia: provocou uma era de governo globalizado, a invenção da política interfronteiras por meio de redes e da cooperação. Viu-se que a resistência simplesmente acelera o desenvolvimento da globalização.
Aqui, então, está o paradoxo central: globalização é o nome dado a um estranho processo que é impulsionado tanto por seus defensores quanto por seus adversários. Basta pensar na precisão com que os terroristas coreografaram os atentados a Nova York e a Washington, sabendo que seus feitos seriam transmitidos ao vivo para o mundo todo pelas redes globais de mídia.
Isso quer dizer que a globalização em si é a causa original do terrorismo? O 11 de setembro foi uma reação compreensível a um rolo compressor que vai destruir até os cantos mais remotos do mundo? Não. Nenhuma idéia abstrata, nem Deus, pode justificar ou desculpar os ataques. A globalização é um processo ambíguo, mas que não pode retroceder. Estados menores e mais fracos em particular estão se afastando da autarquia na tentativa de alcançar os mercados globais.
Mas precisamos combinar integração econômica com política cosmopolita. A dignidade humana, a identidade cultural e a diferença devem ser consideradas mais seriamente no futuro. Depois de 11 de setembro o abismo entre o mundo dos que se beneficiam da globalização e o mundo dos que se sentem ameaçados por ela se fechou. Ajudar os que foram excluídos não é mais uma tarefa humanitária. É do próprio interesse do Ocidente: a chave de sua segurança.

Ódio e globalização
Para conter o ódio de bilhões de pessoas, as fontes que sempre alimentarão os Osama Bin Ladens, a globalização deve se tornar confiável, e seus frutos e liberdades devem ser distribuídos com maior justiça.
O perigo é que aconteça exatamente o contrário: que os riscos imaginados e as falsas promessas de segurança criem uma espiral de expectativas que só poderá acabar em decepção. Existe um risco de que a cooperação transnacional se torne um meio de criar fortalezas, Estados em que tanto a liberdade da democracia quanto a liberdade dos mercados são sacrificadas no altar da segurança privada.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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