São Paulo, domingo, 8 de novembro de 1998

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LIÇÕES CONTEPORÂNES
A concordata brasileira

ALOIZIO MERCADANTE

O Brasil está quebrado, ainda que nem todos tenham se dado conta da gravidade de nossa situação. A armadilha de câmbio e juros gerou uma brutal vulnerabilidade externa. Nosso superávit comercial de US$ 10,4 bilhões se transformou em déficit de US$ 5,5 bilhões este ano e o déficit de transações correntes saltou de US$ 1,7 bilhões para US$ 32,1 bilhões, ao longo do primeiro governo FHC. A crise financeira internacional deverá comprometer por um período prolongado a liquidez e o país não consegue mais financiar seu pesado passivo externo. O déficit externo crescente fragilizou as finanças públicas, nossa dívida interna mobiliária saltou de R$ 61 bilhões para R$ 304 bilhões, crescendo em média R$ 240 milhões por dia durante estes quatro anos de FHC.
O governo empurrou com a barriga os graves desequilíbrios, assistiu passivo a perda de mais de US$ 30 bilhões de reservas cambiais e agora começa a apresentar a conta a população. Estamos voltados ao FMI, a sua política ortodoxa e monetarista que têm sido um retumbante fracasso nos países que se submeteram a sua estratégia de ajuste. O socorro financeiro terá um custo elevado e contrapartidas que apontam para aprofundar o ajuste neoliberal, mantendo a abertura comercial, financeira, privatizações e agora a implantação da segunda geração de reformas sociais com o ataque aos direitos trabalhistas e privatização da Previdência Social.
A estratégia do governo é ganhar tempo, acreditando que haverá uma melhora progressiva no cenário internacional com a coordenação do G7 e organismos multilaterais na crise. Nesta transição a recessão violenta terá a função de reduzir o déficit comercial, via contenção de importações. A linha de crédito que deverá chegar a US$ 40 bilhões recomporá as reservas, permitindo a manutenção da âncora cambial. As privatizações de Petrobrás, parte importante do Banco do Brasil e Banespa e saneamento básico, acompanhado da desregulamentação do mercado de trabalho e desorganização sindical devem assegurar a margem de manobra para dar continuidade ao ajuste estrutural neoliberal do país.
O instrumento principal desta estratégia são os juros elevadíssimos e o pacote fiscal. Cortes de R$ 12,2 bilhões no gasto público tendo como alvo o funcionalismo público, investimentos em infra-estrutura e a área social. O corte de R$ 8,7 bilhões nos gastos correntes e de capital representam 20% de todas as despesas e incluem educação e saúde. Na saúde, depois do ministro J. Serra denunciar a perda de 12,4% de recursos nos últimos quatro anos, acaba prometendo cortes de mais R$ 600 milhões, aderindo ao pacote. O aumento de receita segue o princípio da facilidade, abandonando toda a discussão acumulada sobre a reforma tributária. Novamente, teremos aumento de impostos como o Confins e CPMF, cumulativos, irracionais economicamente, prejudicando as exportações, aumentando os desequilíbrios econômicos e agravando o custo dos financiamentos.
A crise financeira internacional pode caminhar para um cenário de melhora progressiva, mas não está descartada a possibilidade de rupturas parciais. O Brasil é um elo importante na crise, um dique decisivo para impedir uma crise financeira e uma recessão de proporções dramáticas na economia mundial. Por isto, o Brasil pode, neste cenário de crise, ter um tratamento especial, mas é bom lembrar que a Rússia com todo seu arsenal atômico não teve e o México só foi socorrido após uma violenta recessão. A opção de FHC de socializar prejuízos, reestatizar a dívida externa com os novos empréstimos, dolarizar a dívida interna com títulos cambiais e promover a desestruturação do mercado de trabalho acompanhada de uma monumental recessão pode garantir a credibilidade exigida pelos credores e a continuidade do modelo por mais um tempo. Porém, esta estratégia mesmo que exitosa é um completo desastre para o país.
Do nosso ponto de vista, esta crise representa provavelmente nossa última oportunidade de romper globalmente com este modelo que projeta o país para uma trajetória insustentável, onde cada crise nos atinge com mais intensidade e amplia os custos econômicos e sociais do ajuste.
O Brasil precisa reagir e negar este pacote, construindo uma outra estratégia de enfrentamento da crise. O Brasil deve defender sua estrutura produtiva, suas empresas e o nível de emprego na crise. Introduzir mecanismos de controle sobre o fluxo de capitais e defesa das reservas, especialmente sobre o dólar flutuante. Abrir o debate sobre renegociação da dívida externa, porque apenas a redução de juros por parte do G7 é insuficiente para reverter a trajetória internacional de crise financeira. Taxar as importações predatórias criando condições mínimas de competitividade para a produção nacional sufocada pela apreciação da taxa de câmbio, juros elevados e carga tributária irracional. Alavancar as exportações, com medidas financeiras e fiscais, a começar pela agricultura que é uma resposta rápida e relevante. Estimular o turismo interno, desestimulando as saídas de turistas porque não podemos continuar com perdas anuais de US$ 4,3 bilhões na conta de turismo. Criar o Ministério da Produção como propusemos na campanha, coordenando a política industrial, de comércio exterior e de financiamento público da produção. Acelerar as desvalorizações cambiais aliviando com este conjunto articulado de medidas a política monetária permitindo uma redução substantiva das taxas de juros.
No plano fiscal devemos opor à criação de novos tributos irracionais a uma ampla reforma tributária. Os princípios de justiça social, progressividade, racionalidade econômica, simplicidade, desburocratização e estímulos à produção, emprego e exportações devem orientar a reforma tributária entendida enquanto processo. O país não pode continuar supertributando caoticamente o consumo, manter uma baixa tributação sobre a renda do capital e subtributar o patrimônio. A carga tributária sobre a riqueza no Brasil é de apenas 0,8% do PIB, 3% da receita tributária total, enquanto a média internacional é de 8%. Imposto sobre grandes fortuns, ITR e herança e doações deveriam entrar na agenda, bem como uma maior progressividade no imposto de renda. Este governo reduziu a carga tributária sobre a renda do capital, aliviou a alíquota do IRPJ, gerando uma queda na arrecadação neste ano; deduziu os juros (presumidos) sobre capital próprio para fins de apuração de lucro real, reduzindo a base de incidência do IR; isentou acionistas da tributação do IRPF sobre dividendos recebidos; isentou o IR sobre remessa de dividendos e lucros, que devem atingir R$ 8 bilhões este ano; isentou o IR sobre investimentos em fundos e bolsa e reduziu o IOF sobre capital estrangeiro que ingressa no país. Está muito clara a opção de continuar privilegiando o capital financeiro frente a estrutura produtiva.
O pacto federativo foi violentamente atingido pelo pacote. A desconstitucionalização das finanças públicas vem sendo imposta silenciosamente através da criação de uma carga tributária adicional que não é repassada para Estados e municípios. O CPMF, Confins, IOF, Finsocial, Contribuição sobre o Lucro Líquido, PIS-Pasep no orçamento não são repassados, além do FEF que centraliza compulsoriamente recursos na União. Nada foi feito em relação a guerra fiscal, não foram definidos critérios para a compensação da Lei Kandir e a lei Camata como está é inviável para a gestão financeira de muitos Estados da federação.
O funcionalismo depois de quatro anos sem reajuste sofre uma nova compressão salarial, com redução concomitante de salários e benefícios, com medidas que comprometem totalmente a constituição de um regime previdenciário para os servidores. O passivo previdenciário pendente desde a passagem do regime de CLT para o regime único não foi equacionado. Não há déficit no sistema de seguridade social, entendido enquanto previdência, saúde e assistência social e a apresentação da contabilidade previdenciária do setor público por parte do governo é uma grotesca manipulação da opinião pública. O governo confronta contribuição dos servidores com aposentadoria e pensão, sem incluir a contrapartida do Estado enquanto empregador e a necessidade de um sistema previdenciário para o setor público.
Estados, municípios, seguridade social, gastos sociais, funcionalismo estão todos envolvidos em um brutal processo de arrocho subordinado a política de juros e serviço da dívida interna, para demonstrar aos credores que estes receberão o que o país evidentemente não terá como pagar. Sem mudar a política monetária e romper com este processo de endividamento interno teremos um ajuste fiscal permanente e inviável.
A legislação trabalhista deve ser reformada, de forma negociada com as centrais sindicais no sentido do contrato coletivo de trabalho, mas é inaceitável a desregulamentação selvagem que começa a se desenhar nos bastidores deste pacote. As empresas serão pressionadas pelos juros e maior carga fiscal e o governo oferecerá os salários e o emprego como colchão amortecedor, a exemplo do que Argentina e outros governos neoliberais já fizeram, agravando a precarização do mundo do trabalho. É fundamental uma ousada política de emprego que oriente o conjunto da política econômica, na melhor tradição keynesiana.
Este pacote é socialmente perverso, economicamente irracional e estrategicamente ineficiente para enfrentar a crise estrutural que este modelo está impondo ao Brasil. Mantida esta estratégia, assistiremos um crescimento explosivo do desemprego, uma desarticulação profunda da produção, uma desnacionalização generalizada e uma inserção totalmente submissa do país este cassino financeiro globalizado.
Ainda é possível caminhar em outra direção, como fizemos de alguma forma em 1929 e em outros momentos de crise internacional quando o país respondeu defendendo sua produção e o processo de industrialização. O que o Brasil não pode perder é o compromisso intelectual com a teoria do desenvolvimento que este governo nunca teve e um projeto de nação que não temos o direito de abdicar.


Aloizio Mercadante Oliva, 44, economista, professor universitário da Unicamp e PUC, foi candidato a vice-presidente da República com Lula em 1994, é deputado federal eleito e vice-presidente nacional do PT.





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