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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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ARTIGO / ECONOMIA AMERICANA

Direita republicana abandona realidade econômica

Kevin Lamarque - 11.fev.03/Reuters
Greenspan durante depoimento à comissão de assuntos bancários do Senado norte-americano, em que fez críticas veladas a Bush


GERARD BAKER
DO "FINANCIAL TIMES"

Uma piadinha muito típica de Washington anda fazendo as rondas da cidade imperial nos últimos dias. Ela diz que George W. Bush pode não ter tomado as decisões sobre muitos detalhes da reconstrução do Iraque no pós-guerra, mas que uma coisa já está certa: o primeiro diretor do novo banco central iraquiano será Alan Greenspan.
Consta que Bush estaria insatisfeito com o presidente do Federal Reserve (banco central norte-americano). A causa de sua insatisfação não seria a maneira como Greenspan vem tratando da política monetária, nem mesmo alguma discordância quanto a determinação das taxas de juros. Seriam observações que Greenspan fez, no mês passado, diante da comissão de assuntos bancários do Senado.
Em seu último depoimento semestral perante o Congresso, quando falava das perspectivas econômicas do país, o presidente do Fed foi solicitado a comentar as perspectivas fiscais. Era um assunto politicamente carregado, é claro, porque era tratado algumas semanas depois de o presidente ter submetido ao Congresso seu Orçamento, com suas propostas de mais cortes nos impostos.
Se Greenspan tivesse dito algo como ""a meu ver, o presidente endoidou por completo. Suas propostas orçamentárias não vão ajudar a economia em nada no curto prazo, e, a longo prazo, vão apenas nos conduzir ao caos fiscal", então o problema ficaria claramente compreensível.
Mas não foi isso o que ele fez. Greenspan elogiou o plano do presidente de eliminar os impostos sobre os dividendos das empresas, mas expressou algumas reservas cautelosas quanto aos riscos de longo prazo de um déficit orçamentário crescente, que já passou dos 3% do PIB.
""Deveríamos buscar uma flexibilidade maior, mas tomar muito cuidado para não permitir que os déficits escapem do nosso controle", disse ele. E por que é desejável evitar um déficit maciço? ""Contrariamente ao que já foi dito por alguns, um déficit muito grande afeta, sim, os juros de longo prazo", disse ele. "Ele exerce um impacto negativo sobre a economia."

"Traição!"
Houve um silêncio breve enquanto suas observações eram absorvidas pelos presentes, e então republicanos irados começaram a se manifestar. Uma vergonha! Traição! Lesa-majestade! (na realidade, essa última reclamação não chegou a ser dita em voz alta. Hoje em dia, expressões de origem francesa estão proibidas nas discussões políticas americanas). Como pôde Alan Greenspan proferir tais calúnias?
Em poucos dias já surgiam relatos dando conta de que certos funcionários da Casa Branca queriam ver sangue. Greenspan tinha jogado para o alto qualquer chance que poderia ter tido de ser novamente indicado para a presidência do Fed, depois que seu quarto mandato à frente do banco chegar ao fim, em 2004. Os nomes de outros candidatos ao cargo foram vazados para certos jornais.
Algumas semanas já se passaram desde o furor inicial, e fico feliz em poder relatar que as versões segundo as quais Greenspan corria perigo iminente de ser executado foram consideravelmente exageradas.
É verdade que os agentes da Casa Branca, com os olhos permanentemente fixos nas exigências cambiantes das pesquisas de opinião e da base republicana, ficaram furiosos. Enquanto isso, os adultos, que compreendem coisas difíceis como o que fazem os mercados e os bancos centrais, tentam acalmar a situação à custa de petróleo a US$ 35 o barril.
Tudo ainda indica que, se Greenspan quiser mais um mandato à frente do Fed, ele o terá. Quando seu mandato atual terminar, em junho de 2004, ele terá 76 anos de idade. Ninguém espera dele que presida o banco por mais quatro anos, mas há interesse em garantir que ele continue na presidência até o final de seu mandato como diretor do Fed, em 2006. Sempre houve muito a ser dito a favor de lhe dar um mandato final mais curto, de modo a dessincronizar a renomeação do presidente do Fed do ciclo eleitoral, e, a meu ver, essa ainda é a melhor opção que temos.
Ao mesmo tempo, porém, há algumas lições preocupantes a serem tiradas do pequeno desentendimento envolvendo Greenspan. Para começo de conversa, é sinal de até que ponto as discussões políticas em Washington vêm se tornando amargas. Cada palavra do presidente do banco central é interpretada para a vantagem política de alguém. A culpa disso é em parte do próprio Greenspan.
Dois anos atrás, dias depois de Bush ter proposto sua primeira redução de impostos -no valor de US$ 1,7 bilhão e resultando em déficit orçamentário-, o presidente do Fed fez algumas observações que, para dizê-lo em tom muito moderado, não resistiram bem à prova do tempo. Ele lançou um aviso sobre o grave perigo do sempre crescente superávit orçamentário e pediu cortes grandes nos impostos.
Agora que esses superávits viraram déficits, em pouquíssimo tempo, o presidente do Fed teve razão em oferecer um corretivo. Mas o mais importante em tudo isso é perceber até que ponto a direita republicana se desligou da realidade econômica. Hoje em dia ela vê os conceitos mais evidentes e mais amplamente aceitos da economia fiscal como equivalentes à traição.
Nos últimos dois anos, ela vem se engajando num desses exercícios psicológicos em que, se você repete uma afirmação claramente falsa por tempo suficiente, acaba começando a acreditar nela. Os déficits não têm problema. Eles não têm problema porque, se reduzirmos os impostos, vamos aumentar a atividade econômica em grau suficiente para elevar a receita tributária.
Algum dia alguém terá que enfrentar as consequências dessa maluquice, e o custo a ser pago pelo contribuinte e pela economia dos EUA será muito alto -tão alto que, comparado a ele, o desafio de dirigir o banco central do Iraque será café pequeno.


Tradução de Clara Allain


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