São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000


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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Pequena história da República

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES


A República introduziu os militares na política nacional de forma cada vez mais "profissional" a partir do Estado Novo, até convertê-los, em 1964, de poder arbitral nos conflitos das elites regionais em "Poder Nacional" e único guardião permanente da "Ordem e Progresso".
Essa transformação ocorre sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, com a mudança progressiva da doutrina da Escola Superior de Guerra e da forma de organização do Estado Maior das Forças Armadas, sintetizada, no período da ditadura militar até 1979, no binômio "Segurança e Desenvolvimento". Com a "Transição Democrática", o fim da Guerra Fria e o neoliberalismo da década de 90, os militares estão aparentemente sem "Doutrina Positiva".
Os bacharéis do poder civil correram atrás e foram elaborando, depois de cada golpe militar ou mudança de regime político, uma nova Constituição da República. É fantástico contrastar a longa duração do código comercial diante das frequentes mudanças da Constituição brasileira. A forma como entram e saem os direitos sociais e o caráter crescentemente restritivo do papel da Federação, mesmo na Constituição de 1988, merecem ser reestudados concretamente e não apenas à luz das mudanças da filosofia do direito, na qual foram tão profícuos os nossos bacharéis. A partir da desmontagem da Constituição de 1988, os bacharéis estão também aparentemente sem "Doutrina Positiva".
A proclamação da velha República confirmou a hegemonia paulista no pacto de dominação oligárquico (contra os esperneios dos "jacobinos" civis e militares do Rio) e reforçou os nexos da sua burguesia com os centros financeiros internacionais. Daí em diante, cada vez que a ligação se rompe ocorre uma mudança no padrão de financiamento da acumulação de capital que torna necessária a intervenção crescente do Estado Nacional (Caixa de Conversão, Tesouro, Banco do Brasil, BNDE etc.) para repor as condições de valorização da riqueza privada.
As políticas macroeconômicas, sobretudo as cambiais, as monetárias e de ajuste fiscal, nunca permitiram classificar claramente qualquer governo da República como plenamente liberal ou desenvolvimentista, mas sempre tentaram levar à prática uma "macroeconomia da riqueza" que evitasse a quebra dos principais bancos privados. Não é por acaso que o patriciado paulista, apesar da acabrunhante derrota política em 32, manteve os prósperos e milionários negócios da sua nova burguesia e indicou o banqueiro Whitaker para ministro da Fazenda do primeiro governo de Vargas, que tentou refazer um novo pacto oligárquico, o qual termina no Estado Novo.
O Estado Desenvolvimentista nas suas várias versões, de Vargas a JK, de Médici a Geisel, esgota-se com a crise financeira nacional e internacional de 1982, que levou de roldão não apenas o padrão de financiamento que soldava os interesses das burguesias agrário-industrial e financeira, mas também o regime militar e sua falsa "via prussiana".
A Nova República é o resultado de um novo pacto de compromisso entre as elites políticas civis e militares que, simbolicamente, nasce e começa a morrer com a morte do ilustre mineiro Tancredo Neves. Em 1994, depois de várias versões fracassadas de transição, os "paulistas" supostamente voltam ao poder. A nova "Aliança Liberal" é implementada, mas com o auxílio de economistas cariocas de novo estilo, e a "ala desenvolvimentista" paulista foi posta para escanteio, até mesmo nas "privatizações bancárias" e na nova direção do BNDES.
Do ponto de vista constitucional o governo FHC foi além dos generais e da República Velha, destruindo uma das regras básicas da República: a não-reeleição do presidente. Em compensação, reintroduziu todos os "atrasos" conhecidos em matéria de pacto oligárquico, para torná-lo global.
Sobre as reivindicações populares e da chamada "sociedade civil", aplica táticas de dissuasão dignas de um oficial de "Estado Maior" que certamente aprendeu em seu apurado estudo da história brasileira. Para manter o apoio dos "aliados" descontentes, usa o "mimetismo sedutor" de sua longa experiência de vida cosmopolita e domina no limite os recursos midiáticos para tentar apaziguar as massas. Finalmente, centraliza o poder do Executivo além dos limites jurídicos e tenta liquidar de vez o Pacto Federativo sem destruir o poder político oligárquico. Sucateou parte das forças produtivas internas a pretexto de submetê-las a uma abertura competitiva e reduziu a uma insignificância o nosso comércio exterior, levando às últimas consequências o "capitalismo dependente" atrelado às finanças internacionais.
Em resumo: o atual presidente não levou em conta nem a legitimidade jurídica nacional nem o avanço da organização dos trabalhadores nas últimas décadas. À luz dos interesses das grandes empresas nacionais, públicas e privadas, pode ser considerado um "leiloeiro" perdedor no mercado global. Como estadista nacional, afinal apequenou-se e corre o risco de tornar-se apenas um candidato a procônsul latino-americano da nova Pax Americana.


Maria da Conceição Tavares, 69, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail: mctavares@cdsid.com.br



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