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São Paulo, quarta-feira, 09 de abril de 2003

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ARTIGO

O caminho para a América Latina

HORST KÖHLER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O ano passado mostrou-se extremamente difícil para a América Latina. Dificuldades internas, aliadas a um ambiente externo muito mais problemático, produziram algumas das recessões mais graves já registradas em alguns países e crescimento uniformemente mais lento em outros. Mas não creio que isso vá significar uma volta à década perdida de 1980. Alguns países resistiram bem à tempestade; outros reagiram adotando políticas firmes. Em vários países, eleições democráticas resultaram em novas lideranças -que aderem às práticas dos mercados, mas enfatizam claramente a necessidade de promover a igualdade social. Essa é a agenda correta, que merece amplo apoio do FMI e da comunidade internacional.
Nos anos 90, depositavam-se grandes esperanças nas reformas políticas e econômicas. Elas renderam frutos, sobretudo no que tange à inflação, que foi reduzida por todo esse continente propenso a surtos recorrentes de inflação elevada. A liberalização dos mercados e a privatização atraíram grandes volumes de capitais externos. Esses esforços produziram resultados em termos de crescimento para o continente (ainda que não para todos os países): entre 1991 e 1997, o PIB per capita cresceu à média de quase 2,5% ao ano, comparado à queda anual média de 1% registrada na década de 1980. No entanto, o crescimento desacelerou a partir de 1998 e hoje a renda real per capita praticamente retrocedeu aos níveis de 1997 -de fato, aos mesmos níveis de 25 anos atrás.
As causas dessa retração continuam a ser debatidas e ainda há lições importantes a aprender. Alerto, porém, contra uma condenação fácil das políticas voltadas para o mercado como representativas da causa fundamental dos problemas da América Latina. Com efeito, concordo com Ernesto Zedillo, ex-presidente do México, quando ele afirma que o principal problema da América Latina não foi realizar reformas demais, e sim de menos.


A estabilidade macroeconômica e o reforço das instituições para permitir seu melhor funcionamento beneficiarão os pobres


Além disso, muitas vezes as políticas foram incoerentes. A privatização não teve o respaldo de um arcabouço regulatório que garantisse a concorrência. A política fiscal muitas vezes não foi compatível com o modelo cambial escolhido. E mais: a excessiva desigualdade de renda e o descaso pelas redes de segurança social resultaram na rápida erosão do apoio popular às reformas econômicas, especialmente nas novas democracias. Em muitos casos, essas incongruências conduziram à grave deterioração das finanças públicas: os níveis reduzidos de arrecadação tributária -frequentemente decorrentes da sonegação fiscal- e a ineficiência dos gastos resultaram no crescimento da dívida pública e debilitaram a capacidade do governo de prover serviços públicos essenciais em diversos países.
Seria equivocado sugerir que existem soluções pré-fabricadas para a América Latina. Mas proponho, ao menos, quatro conclusões preliminares que poderiam ajudar a pavimentar o caminho para o progresso.
Primeiro, as economias da América Latina precisam se proteger melhor contra as crises. Reduzir a vulnerabilidade dos países requer políticas macroeconômicas sólidas, especialmente uma política fiscal judiciosa. Isso significa viver dentro dos próprios limites e, normalmente, só contrair dívidas para investimento, não para consumo. É preciso priorizar as reformas tributária e previdenciária e a eficiência da administração pública. A experiência demonstra que os regimes cambiais mais flexíveis são úteis porque amortecem os choques externos. Além disso, a integração do comércio à economia global precisa recuperar o atraso em relação à integração financeira: em muitos países, a conta de capitais é muito mais aberta que a balança comercial. De modo mais geral, é preciso gerar mais poupança interna, tanto pela redução do endividamento público quanto pela promoção do desenvolvimento de instituições financeiras nacionais fortes e capazes de mobilizar a poupança e intermediá-la com eficiência.


Concordo [...] que o principal problema da América Latina não foi realizar reformas demais, e sim de menos


Segundo, políticas macroeconômicas sólidas, por si só, não são suficientes para recuperar o crescimento sustentado. Também são necessárias reformas estruturais para possibilitar a realização do potencial de crescimento a longo prazo. Ainda há bastante espaço para a liberalização do comércio, acompanhada pela ampliação do acesso aos mercados das economias avançadas à medida que a região reduza as barreiras tarifárias e não-tarifárias. É preciso aumentar a eficiência dos sistemas regulatórios, de forma a estimular o investimento, sobretudo pelas empresas de menor porte. E é preciso ampliar o acesso ao ensino de qualidade, para formar capital humano -e para reduzir a pobreza.
Terceiro, urge fortalecer as instituições que respaldam a democracia e o funcionamento da economia de mercado. A proteção dos direitos de propriedade, a manutenção do Estado de Direito e a provisão de sólida regulamentação dos mercados são elementos essenciais de uma economia em plenas condições de funcionamento. Além disso, a existência de instituições sólidas promove a coesão e a equidade sociais, proporcionando a estabilidade necessária para as reformas econômicas. A promoção de uma cultura de responsabilidade democrática e de confiança é um elemento crítico para garantir o crescimento sustentável a longo prazo e a paz social.
Quarto, é preciso atacar diretamente os problemas da falta de equidade social e da má governança que assolam grande parte do continente. A maioria das medidas de distribuição de renda mostra que houve pouco ou nenhum progresso nas duas últimas décadas, embora alguns países tenham conseguido avanços. A estabilidade macroeconômica e o reforço das instituições para permitir seu melhor funcionamento beneficiarão os pobres. Mas também é preciso adotar políticas direcionadas expressamente ao alívio da pobreza e à melhoria da equidade social. Devem ser reforçados os serviços públicos, como os de segurança, saneamento e saúde, que formam a base da dignidade humana. A reforma agrária -retomada com êxito no Brasil e na Colômbia em projetos inovadores- pode ser um instrumento poderoso para reduzir a pobreza nas zonas rurais. E a luta contra a corrupção renderá benefícios consideráveis para o crescimento econômico, ao aumentar a confiança dos investidores, ao mesmo tempo em que ataca diretamente a questão da equidade social, pois frequentemente é sobre as pequenas empresas e os pobres que recai a maior parte do fardo da corrupção.
Estou convencido de que esses elementos são críticos para o progresso futuro da América Latina. E essa agenda é viável. Em especial, deposito grande confiança no novo governo do Brasil, que está traçando um rumo corajoso para restaurar o crescimento e atingir a redução sustentável da pobreza.
O presidente Lula da Silva definiu a agenda correta: construir sobre os êxitos obtidos pelo presidente anterior, continuando a fortalecer o arcabouço institucional do Brasil, a manter a estabilidade macroeconômica e reduzir a desigualdade de renda, e a reforçar a coesão social. O FMI está totalmente empenhado em ajudar o Brasil nesse empreendimento.
Mas a América Latina também merece o apoio da comunidade internacional, sobretudo por meio da abertura do comércio. As exportações da América Latina continuam a enfrentar barreiras significativas em grandes mercados, especialmente em áreas como produtos agrícolas, têxteis e calçados. É premente que as economias avançadas assumam a liderança para levar a rodada de negociações comerciais de Doha a uma conclusão bem-sucedida, proporcionando assim à América Latina -bem como a outras economias emergentes e em desenvolvimento- a oportunidade de conseguir o crescimento auto-sustentado.
O potencial de crescimento é enorme na América Latina e existem líderes que sabem qual é o caminho para o progresso. O FMI está empenhado em colaborar ativamente com eles, para devolver a América Latina à trajetória do crescimento econômico sustentado.

Horst Köhler é diretor-gerente do FMI (Fundo Monetário Internacional).


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