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LUÍS NASSIF
Os congos de São Benedito
Nos meus 10 anos, Luiz Salomão
era meu ídolo. Era velhíssimo, do
alto de seus 15 anos. E velho não
porque tivesse quase metade a
mais de minha idade, mas porque
tinha a velhice ancestral dos pretos velhos: era congo de São Benedito e já dispunha da alta patente
de violeiro e compositor de pontos
de congada.
Minha casa era em frente ao largo onde ficava a igreja de São Benedito, com o interior decorado
por 12 cenas da Via Sacra pintadas pelo mestre Pedro Zogbi, de
São José do Rio Pardo -que, no
início do século, percorreu toda a
região pintando afrescos e retratos. Ainda nos 60 as paredes foram
caiadas pelo padre Cavour, ao assumir a paróquia. Perdeu o céu só
por conta disso.
Por aqueles dias, o São Benedito
ainda conservava viva a história.
O largo fica a apenas dois quarteirões do centro da cidade, no fim
da rua Rio de Janeiro, depois de
uma ladeira que, assim como o
largo, nem asfaltada era.
O São Benedito -assim que o
chamávamos, como a um amigo
querido- era levemente inclinado e atapetado com um cascalho
que tornava nosso time de pelada
imbatível. Nosso know-how consistia em nos equilibrar no cascalho, enquanto os adversários, com
vigor e pouca experiência, passavam a maior parte do tempo ralando o traseiro no chão.
Há muito os congos haviam se
retirado para bairros cada vez
mais distantes. Da cidade a gente
subia para o São Benedito. Do São
Benedito, para o bairro Aparecida, onde, antes de se mudar para
Guarujá, morava seu Zé Balbino.
Era pai da dona Tita, doceira da
fábrica de doces do meu tio, e quase mãe nossa. Mesmo depois de
marmanjo, quando ela, pequenina, me olhava com aqueles olhos
de cobertor, dava vontade de pular no seu colo.
Subindo o Aparecida, chegava-se na Vila Nova, onde havia mais
congos. À direita do São Benedito,
para os lados do Quisisana, o bairro da Cascatinha, também reduto
de congos. Subindo a Cascatinha,
o Serrote, ponto mais distante da
cidade, onde vivia Luiz Salomão.
No mês de abril juntavam-se todos no largo, em frente à igreja,
para ensaiar para a festa de São
Benedito, que ia de 1º a 13 de
maio. Os conguinhos eram nossos
amigos diletos, de Luiz Salomão
ao Pulguinha, passando pelo Honório. Nem me importava quando
ia jogar bola de gude com o Salomão e acabava rapelado.
Nas noites de abril, era um mês
inteiro de ensaio dos congos.
Quando escurecia, começavam a
chegar os mais velhos, como entidades humildes vindo daqueles
bairros que ficavam acima do São
Benedito. O que eu mais gostava
era o Tião Pamonheiro e sua voz
de falsete, a mesma com que à noite ele fazia a terceira voz dos pontos de congada, e de dia gritava
"olha a pamonha, milho verde".
Os meninos já estavam esperando
no largo desde a manhã.
Eles se organizavam em duas filas. No final delas, iam os conguinhos, sassaricando como cabritinhos, com um jeito de pular desengonçado que nós, os branquelas,
jamais conseguíamos imitar.
Na semana da festa, o ritual era
fantástico. Ao lado dos Congos,
havia os caiapós -grupo que se
vestia de índios. Na madrugada
do dia 13, feriado municipal, os
caiapós se embrenhavam na mata
do São Domingos. Quando o sol
nascia, os congos seguiam para o
pé da serra e ficavam cantando,
até que os caiapós descessem para
ser catequizados.
Mas o grande ritual era a batalha final entre cristãos e mouros,
que encerrava a festa. Do lado
cristão, o comandante-em-chefe
era Carlos Magno, na pele retinta
de Zé Balbino, com sua roupa azul
e condecorações de latão. No seu
exército estavam os 12 de França,
liderados pelo heróico Roldão, na
vida real Jaguanário, mecânico
da revenda Metropolitana, do
Constantino Cury, aqui de São
Paulo. Do lado adversário, as hostes se vestiam de vermelho e eram
comandadas pelo vil almirante
Balaão.
No fim dos 60 ocorreu a história
que reproduzo como me foi contada pelo Pirilo Lamparina lá por
volta de 72, mas que a cidade não
tomou conhecimento porque os
congos não eram de abrir o jogo.
Mais velho e sábio dos congos de
São Benedito, Lamparina viu o rei
Congo Zé Balbino subindo o morro do Serrote. Estranhou, já que
Balbino tinha se mudado para
Guarujá. Mas, com seu único olho
são, viu também que estava sendo
seguido pelas hordas inimigas, comandadas pelo vil almirante Balaão. Isso ele me disse da sua boca,
que a terra já comeu.
Antes de tentar entender, deu o
alarme. Como num passe de mágica, dos quatro cantos começaram
a surgir os velhos congos, armados
com seus instrumentos musicais.
Um a um pegaram suas charretes
e subiram em direção ao morro,
para proteger seu soberano. Os
antigos juram que, entre eles, estavam o ainda vivo Tião Pamonheiro e o já falecido Luiz Salomão. E ainda nem era maio.
Os embates que se sucederam
ninguém registrou. De seu lado, os
congos estavam fortalecidos por
São Genaro, protetor dos violeiros.
Mas as forças do mal eram poderosas. Foram horas e horas de rezas e cantorias, embaladas por alguns dos pontos do Luiz Salomão.
Ao final, perto da vitória, alguém
entrou na sala e avisou que Zé
Balbino acabara de falecer em
Guarujá, indicando Jaguanário
seu sucessor. O novo rei assumiu,
morreu pouco tempo depois, mas,
enquanto vivo, manteve seu cetro
com dignidade.
Quando vou a Poços, lá por perto da 0h, peço licença aos amigos e
vou sozinho para os jardins do Pálace rever meus queridos. Estão lá
o vô Issa, meus pais, Oscar e Teresa, os tios Léo e Rosita, mais recentemente o tio João. E junto deles
meus amigos congos aquecendo
meu coração com seus cantos de
guerra, dos quais o meu preferido
é: "Lá na rua de baixo / lá no fundo da horta / se a polícia me prende, olê-rê / a rainha me solta".
E-mail: lnassif@uol.com.br
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