São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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LUÍS NASSIF

Os congos de São Benedito

Nos meus 10 anos, Luiz Salomão era meu ídolo. Era velhíssimo, do alto de seus 15 anos. E velho não porque tivesse quase metade a mais de minha idade, mas porque tinha a velhice ancestral dos pretos velhos: era congo de São Benedito e já dispunha da alta patente de violeiro e compositor de pontos de congada.
Minha casa era em frente ao largo onde ficava a igreja de São Benedito, com o interior decorado por 12 cenas da Via Sacra pintadas pelo mestre Pedro Zogbi, de São José do Rio Pardo -que, no início do século, percorreu toda a região pintando afrescos e retratos. Ainda nos 60 as paredes foram caiadas pelo padre Cavour, ao assumir a paróquia. Perdeu o céu só por conta disso.
Por aqueles dias, o São Benedito ainda conservava viva a história. O largo fica a apenas dois quarteirões do centro da cidade, no fim da rua Rio de Janeiro, depois de uma ladeira que, assim como o largo, nem asfaltada era.
O São Benedito -assim que o chamávamos, como a um amigo querido- era levemente inclinado e atapetado com um cascalho que tornava nosso time de pelada imbatível. Nosso know-how consistia em nos equilibrar no cascalho, enquanto os adversários, com vigor e pouca experiência, passavam a maior parte do tempo ralando o traseiro no chão.
Há muito os congos haviam se retirado para bairros cada vez mais distantes. Da cidade a gente subia para o São Benedito. Do São Benedito, para o bairro Aparecida, onde, antes de se mudar para Guarujá, morava seu Zé Balbino. Era pai da dona Tita, doceira da fábrica de doces do meu tio, e quase mãe nossa. Mesmo depois de marmanjo, quando ela, pequenina, me olhava com aqueles olhos de cobertor, dava vontade de pular no seu colo.
Subindo o Aparecida, chegava-se na Vila Nova, onde havia mais congos. À direita do São Benedito, para os lados do Quisisana, o bairro da Cascatinha, também reduto de congos. Subindo a Cascatinha, o Serrote, ponto mais distante da cidade, onde vivia Luiz Salomão.
No mês de abril juntavam-se todos no largo, em frente à igreja, para ensaiar para a festa de São Benedito, que ia de 1º a 13 de maio. Os conguinhos eram nossos amigos diletos, de Luiz Salomão ao Pulguinha, passando pelo Honório. Nem me importava quando ia jogar bola de gude com o Salomão e acabava rapelado.
Nas noites de abril, era um mês inteiro de ensaio dos congos. Quando escurecia, começavam a chegar os mais velhos, como entidades humildes vindo daqueles bairros que ficavam acima do São Benedito. O que eu mais gostava era o Tião Pamonheiro e sua voz de falsete, a mesma com que à noite ele fazia a terceira voz dos pontos de congada, e de dia gritava "olha a pamonha, milho verde". Os meninos já estavam esperando no largo desde a manhã.
Eles se organizavam em duas filas. No final delas, iam os conguinhos, sassaricando como cabritinhos, com um jeito de pular desengonçado que nós, os branquelas, jamais conseguíamos imitar.
Na semana da festa, o ritual era fantástico. Ao lado dos Congos, havia os caiapós -grupo que se vestia de índios. Na madrugada do dia 13, feriado municipal, os caiapós se embrenhavam na mata do São Domingos. Quando o sol nascia, os congos seguiam para o pé da serra e ficavam cantando, até que os caiapós descessem para ser catequizados.
Mas o grande ritual era a batalha final entre cristãos e mouros, que encerrava a festa. Do lado cristão, o comandante-em-chefe era Carlos Magno, na pele retinta de Zé Balbino, com sua roupa azul e condecorações de latão. No seu exército estavam os 12 de França, liderados pelo heróico Roldão, na vida real Jaguanário, mecânico da revenda Metropolitana, do Constantino Cury, aqui de São Paulo. Do lado adversário, as hostes se vestiam de vermelho e eram comandadas pelo vil almirante Balaão.
No fim dos 60 ocorreu a história que reproduzo como me foi contada pelo Pirilo Lamparina lá por volta de 72, mas que a cidade não tomou conhecimento porque os congos não eram de abrir o jogo.
Mais velho e sábio dos congos de São Benedito, Lamparina viu o rei Congo Zé Balbino subindo o morro do Serrote. Estranhou, já que Balbino tinha se mudado para Guarujá. Mas, com seu único olho são, viu também que estava sendo seguido pelas hordas inimigas, comandadas pelo vil almirante Balaão. Isso ele me disse da sua boca, que a terra já comeu.
Antes de tentar entender, deu o alarme. Como num passe de mágica, dos quatro cantos começaram a surgir os velhos congos, armados com seus instrumentos musicais. Um a um pegaram suas charretes e subiram em direção ao morro, para proteger seu soberano. Os antigos juram que, entre eles, estavam o ainda vivo Tião Pamonheiro e o já falecido Luiz Salomão. E ainda nem era maio.
Os embates que se sucederam ninguém registrou. De seu lado, os congos estavam fortalecidos por São Genaro, protetor dos violeiros. Mas as forças do mal eram poderosas. Foram horas e horas de rezas e cantorias, embaladas por alguns dos pontos do Luiz Salomão. Ao final, perto da vitória, alguém entrou na sala e avisou que Zé Balbino acabara de falecer em Guarujá, indicando Jaguanário seu sucessor. O novo rei assumiu, morreu pouco tempo depois, mas, enquanto vivo, manteve seu cetro com dignidade.
Quando vou a Poços, lá por perto da 0h, peço licença aos amigos e vou sozinho para os jardins do Pálace rever meus queridos. Estão lá o vô Issa, meus pais, Oscar e Teresa, os tios Léo e Rosita, mais recentemente o tio João. E junto deles meus amigos congos aquecendo meu coração com seus cantos de guerra, dos quais o meu preferido é: "Lá na rua de baixo / lá no fundo da horta / se a polícia me prende, olê-rê / a rainha me solta".

E-mail: lnassif@uol.com.br


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