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OPINIÃO ECONÔMICA
Fuga para a frente
RUBENS RICUPERO
A expressão de origem francesa significa criar a impressão
de resolver um problema com solução arrojada quando se está na verdade a fugir dele. Ela se aplica com
justeza a um dos últimos modismos
da economia internacional, a idéia
de que a Internet e a tecnologia da
informação farão o milagre de eliminar o abismo que separa os subdesenvolvidos dos países avançados.
Essa tentação esteve o tempo todo
presente na reunião do Conselho
Econômico e Social da ONU (Ecosoc), da qual participo neste momento em Nova York e de onde escrevo contemplando a placidez estival das águas cintilantes do East River. O espírito festivo dos fogos de artifício da Independência americana,
no dia 4 de julho, pairava na manhã
seguinte na sala em que falaram o
secretário do Tesouro dos EUA,
Larry Summers, o presidente do
Banco Mundial, James Wolfensohn,
o diretor da Organização Mundial
de Comércio, Mike Moore, o diretor-adjunto do FMI, Eduardo Aninat.
Ao chegar a minha vez, tive de fazer
o papel sempre ingrato do advogado
do diabo, chamando a atenção para
os aspectos menos agradáveis da
realidade.
Comecei por indagar se era mesmo verdade que as tecnologias da
informação vão reduzir a crescente
desigualdade dentro de cada país e
entre eles ou, ao contrário, constituem um dos principais fatores que
contribuem para essa tendência.
Basta atentar num fato: apenas na
cidade de Nova York existem mais
linhas telefônicas do que em todo o
continente africano! Quem ignora,
por outro lado, que os altos salários
pagos às pessoas tecnologicamente
qualificadas estão na raiz das disparidades de renda atuais?
A tecnologia não é uma panacéia
universal e muito menos um elemento autônomo em relação às demais condições que prevalecem em
determinada sociedade, inclusive o
nível de analfabetismo e de educação em geral. Trata-se em realidade
de algo difícil de obter, complicado
para adaptar a condições diferentes,
necessitando de mercados que em
muitos países ou não existem ou se
revelam imperfeitos.
Nem é ela independente do contexto macroeconômico. O conhecimento novo vem sempre embutido
em novas máquinas ou em gente
habilitada a desempenhar tarefas
especializadas. Sua difusão e absorção requerem investimento em larga
escala, quase certamente envolvendo um significativo componente de
governo. Foi instrutivo, nesse sentido, ouvir o insuspeito secretário
americano do Tesouro afirmar categoricamente que, sem os gastos com
pesquisa do governo dos EUA, nem
a Internet nem a decifração do código genético jamais teriam existido.
Obviamente que os nossos fundamentalistas do mercado ainda não
compreenderam.
É certo que as tecnologias de ponta
permitiram o aparecimento de centenas de firmas de crescimento fulminante. Quase todas, contudo, nasceram e cresceram nos Estados Unidos. Os europeus e japoneses tentam
recuperar o atraso adquirindo companhias americanas, o que vem alimentando a onda de gigantescas fusões e aquisições nos setores tecnológicos. Não é preciso esforço para demonstrar que empresas de países como o nosso só podem jogar o jogo de
fusões e aquisições na qualidade de
vítimas. Como se diria em Pernambuco, não como cavalcanti, mas como cavalgado.
Aliás, essa mesma tendência aumentou a volatilidade de mercados
financeiros que operam agora 24 horas por dia, tornando muito mais difícil, como se viu nas crises asiáticas e
russa, controlar o contágio irracional e o pânico do estouro da boiada.
A proliferação de companhias não-testadas na dura realidade do desempenho é o mais recente capítulo
na inesgotável história de estupidez
humana e da especulação financeira. No mesmo dia em que discutíamos, no edifício da ONU, as promessas mirabolantes da tecnologia da
informação, em Wall Street, a alguns quarteirões de distância, desabavam estrepitosamente as cotações
de ações que haviam disparado antes, em total desprezo pela produtividade ou pelos lucros efetivos.
Nessa matéria, uma vez mais se
ignoram as lições da história. Os que
exageradamente comparam os
eventos atuais à Revolução Industrial costumam esquecer os aspectos
mais perturbadores desse grande
momento de ruptura. Ela não foi
apenas, juntamente com a revolução agrícola do período neolítico, a
mais importante explosão multiplicadora da produtividade jamais
ocorrida. Foi ela também que inaugurou o crescente abismo entre os
países ocidentais e o resto do mundo.
A Revolução Industrial de certa forma inventou o subdesenvolvimento,
ao mesmo tempo em que criava o
desenvolvimento. O eminente historiador econômico professor Paul
Bairoch mostrou que, no início do
século 18, o diferencial no nível de
produção, se é que existia, entre a
Europa Ocidental e as nações do que
seria mais tarde chamado de Terceiro Mundo, dentre elas a China e a
Índia, se situava no máximo ao nível de 1,2 ou 1,3 para 1, isto é, entre
20% e 30%. A mesma proporção
existia em termos de diferenças em
tecnologia, produtividade, bem-estar. Hoje, a proporção foi multiplicada por centenas de pontos percentuais e não cessa de aumentar. Nem
as razões da lógica interna da tecnologia nem as da história da Revolução Industrial permitem dessa vez
esperar desenlace muito diferente.
Não obstante todo seu inegável
potencial positivo, a verdade é que a
tecnologia da informação constitui
parte integral de uma estrutura global que continua fortemente desequilibrada contra os pobres e vulneráveis, seja no interior de cada sociedade ou entre elas. Reduzir as desigualdades agravadas por essas tendências não será jamais o fruto espontâneo ou automático do funcionamento dos mercados ou da evolução tecnológica. Isso depende, com
efeito, de valores como a equidade, a
solidariedade, a compaixão, que
pertencem a uma outra esfera mais
alta de ação. Por mais valiosas que
sejam, a economia e a tecnologia devem ser tratadas de acordo com sua
natureza de meros instrumentos
não-autônomos, não-absolutos, a
serviço de um objetivo humano incomparavelmente mais nobre: o de
construir sociedade justa, acolhedora e equilibrada.
Rubens Ricupero, 63, secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento)
e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo
da Crise" (editora Revan). Escreve aos
domingos nesta coluna.
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