São Paulo, domingo, 09 de julho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

O gênio de Mequinho

São interessantes as confrarias -grupos de pessoas que se mantêm unidas por afinidades ou práticas em comum-, formando seu mundo particular, transmitindo sua tradição por livros ou oralmente, criando suas lendas e heróis -muitos dos quais lembram o Capitão Marvel, que se tornam heróis quando exercitam suas competências, mas voltam a ser pessoas comuns no dia-a-dia.
Desde minha adolescência, frequentei inúmeras confrarias da maneira mais eclética possível. Integrei grupos estudantis, de tênis de mesa, de pebolim, da fanfarra da Banda dos Maristas. Depois, em São Paulo, confrarias de choro e de botecos, de economia e mercado financeiro.
Uma das mais curiosas foi a confraria do xadrez. A opinião pública descobriu o xadrez no confronto Fischer-Spassky, em 1972. Fischer era o gênio americano que fez carreira atropelando inclusive o controle político que a União Soviética detinha na Confederação Mundial de Xadrez. Era o americano típico, individualista, competitivo até a medula, considerado o mais precoce jogador de xadrez da história, ao lado do espanhol Pomar e do cubano Capablanca.
Spassky era o campeão mundial desde 1969, russo, um cavalheiro intelectualizado e galante.
Ambos exerciam um fascínio enorme sobre a opinião pública. Mas, na confraria do xadrez, nosso herói era o jogador de menor "appeal" possível, parecendo uma versão mirim do "dr. aloprado", aquele personagem do Jerry Lewis. Tratava-se de Henrique da Costa Mecking, o Mequinho.
Aprendi a jogar xadrez lá pelos 16 anos de idade, assim como meu primo Oscar, que frequentava o clube de xadrez de Poços. Era um clube de tradição que teve, entre seus aficionados, até a famosa Miss Tamara, uma nobre russa que falava seis línguas, que se exilou em Poços com uma aia e que volta e meia o "Cruzeiro" apresentava ao distinto público como a princesa Anastácia, filha do Czar.
Muito distraída, nas finais de partidas ela costumava confundir e jogar com as peças dos adversários. Fora isso, era uma legítima representante russa.
Tinha também o seu Oteniel, pai do Félix, amigo nosso, que tinha uma reação psicossomática peculiar. A gente ia jogando, aí falava: "xeque, seu Otoniel".
Havia um português insistente, do qual não me lembro o nome. A primeira vez que Mequinho foi fazer uma simultânea (contra vários jogadores) em Campinas, Poços enviou sua equipe, com o português junto. No décimo quinto lance, o português já estava sem dois cavalos e um bispo.
Mequinho perguntou: "O senhor vai continuar?". Ele, com a petulância dos que nunca se dão por vencido: "Mas é claro!". E Mequinho, conformado: "Mas como o senhor gosta do jogo".
Pois é sobre Mequinho a coluna. Até então, o Brasil nunca havia dado bons jogadores de xadrez. Mequinho veio direto do Rio Grande do Sul arrasando.
Com 12 anos tornou-se campeão brasileiro, com 14, latino-americano. Com 16 já integrava, ao lado de Capablanca, Pomar e Fischer, o clube dos mais precoces enxadristas do século.
Era dono de um estilo sólido e eclético. Não tinha a retranca irritante de Petrossian, o campeão russo. Nem a imprudência maravilhosa de Mikhail Thal, homem capaz de lances ousadíssimos de sacrifício e que conseguiu ser campeão por dois anos, derrotando Mikhail Botvinick, o grande professor da escola russa moderna.
Os campeonatos mundiais eram precedidos de dois torneios que classificavam quatro finalistas. Em dois interzonais sucessivos, Mequinho sagrou-se campeão, enfrentando heróis do xadrez -como Paul Keres, com ataques brilhantes, meu ídolo, e Smislov, ex-campeão mundial.
Nas semifinais acabou sendo derrotado, nas duas vezes, por dois russos brilhantes: Korchnoi (jogador de ataques devastadores) e Polugaievski, considerado um grande teórico da época.
Pesaram a questão emocional, a falta de assessores e a antipatia na imprensa. Depois da última derrota, Mequinho foi acometido por uma doença que quase o liquidou.
Curou-se, tornou-se místico, tentou a volta ao xadrez, mas já sem o instinto matador de antes.
Para a minha geração, foi um dos gênios esportistas mais relevantes que o país já produziu.


E-mail - lnassif@uol.com.br



Texto Anterior: Lições contemporâneas - Aloizio Mercadante: Metas sociais: um direito cidadão
Próximo Texto: Globalização: Grupo dos 7 estuda cancelar dívida dos países mais pobres
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.