São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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RUBENS RICUPERO

Aulas de vida

De repente, espalhou-se a notícia de que, naquela tarde, Fabio Konder Comparato dava sua última aula na USP

PARA QUEM nasceu com a vocação de ensinar a viver melhor, a última aula nunca haverá. O que pode haver são imposições do calendário escolar, prazos burocráticos como a aposentadoria compulsória por idade obrigando a transferir lições de um cenário para outro.
Foi o que sucedeu em 29 de junho, no curso de pós-graduação em direitos humanos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. De repente, espalhou-se a notícia de que, naquele fim de tarde, Fabio Konder Comparato dava sua última aula na USP, antecipando de um par de meses a fatalidade do retiro. Como é típico dele, não havia prevenido ninguém. Em pouco tempo, encheu-se o anfiteatro de público muito maior que
o de seus alunos regulares: professores, ex-alunos, advogados, admiradores, os privilegiados que ouviram por duas horas sua fascinante aula de despedida. Falou sobre os quatro grandes valores republicanos, aqueles que fundam o regime cujo princípio definidor deveria ser a virtude.
O primeiro é a Igualdade, a real, baseada em condições concretas, não a meramente formal ou jurídica dos liberais. O que vem depois, a Liberdade, que pressupõe a Igualdade. Em seguida, o derivado do mais forte impulso biológico desde a primeira infância, a Segurança, hoje necessariamente econômica. E, como coroa desses valores, a Solidariedade, expressão jurídica da fraternidade da Revolução Francesa, eco, por sua vez, da pregação evangélica de que todos os homens são irmãos.
Evocou os mais de 40 anos de magistério: como a severidade inicial foi sendo abrandada pela doçura do afeto aos alunos, ao aprender que não precisava julgá-los, pois a vida, esse "bicho-papão" da cantiga de ninar, não se esqueceria de fazê-lo, que, afinal, só a vida encontra o caminho da própria vida. Terminou sob flores e aplausos, com longa e comovida ovação dos presentes em pé, conscientes de que assistiam à passagem de um faixo de luz.
Não tendo sido avisado, narro de ouvido, contente de ver a virtude de exceção, quase a que em outros tempos se chamaria de virtude em grau heróico, reconhecida pelos que devem ao Fabio boa parte da formação e dos valores que dão sentido à existência. Sei do que falo porque há mais de 50 anos lhe acompanho o exemplo, dos bancos da faculdade à Conferência Vicentina de São Basílio Magno, da qual foi o animador nas Arcadas, das visitas às famílias pobres ao brilhante doutorado na Universidade de Paris.
Maior vocação jurídica de nossa turma, a Clovis Bevilaqua, de 1955 a 1959, titular indiscutível da cadeira de Direito da Empresa, autor de livros e pareceres que fazem autoridade, não haveria limites para o que Fabio poderia ter acumulado em riqueza, prestígio e honrarias. Em vez disso, cedo preferiu liquidar a banca de advocacia e dedicar-se aos direitos humanos, que passou a ensinar, defendendo com desassombro as vítimas do terrorismo ditatorial, antes e depois de sua destacada participação na Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese. Ao lado de seu tio, Evandro Lins e Silva, honrou o nome de advogado, ao ajudar decisivamente a pôr fim à perversão da República no governo Collor.
Concebeu e fundou a Escola de Governo, hoje espalhada pelos quatro cantos do Brasil e na qual, ano após ano, dedica várias noites da semana a formar com desinteresse os jovens que poderão um dia melhorar nossa lamentável vida pública. Acaba de publicar pela Companhia das Letras a obra de uma vida, "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno". É suma universal do melhor que se poderia dizer do sentido da aventura humana na busca dos valores que elevam a história na convergência para síntese unificadora. A limpidez e transparência da escrita fazem brotar páginas luminosas em que a filosofia, a história, as sugestivas citações literárias desvelam ao leitor o que é Ética: o caminho para aprender a melhor viver, a buscar não carreira ou êxito mas a plenitude de vida nobre, que ajude cada pessoa a realizar sua eminente dignidade.
São aulas perenes que não se interrompem pela compulsória. Neste Brasil de mensalões e sanguessugas, são lições de vida, ao alcance dos que buscam não só a verdade e pureza da doutrina mas a coerência da prática sem mancha de um mestre da ética para o nosso tempo.


RUBENS RICUPERO, 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

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