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RUBENS RICUPERO
Aulas de vida
De repente, espalhou-se a
notícia de que, naquela tarde,
Fabio Konder Comparato
dava sua última aula na USP
PARA QUEM nasceu com a vocação de ensinar a viver melhor,
a última aula nunca haverá. O
que pode haver são imposições do
calendário escolar, prazos burocráticos como a aposentadoria compulsória por idade obrigando a transferir lições de um cenário para outro.
Foi o que sucedeu em 29 de junho,
no curso de pós-graduação em direitos humanos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. De repente, espalhou-se a notícia de que,
naquele fim de tarde, Fabio Konder
Comparato dava sua última aula na
USP, antecipando de um par de meses a fatalidade do retiro. Como é típico dele, não havia prevenido ninguém.
Em pouco tempo, encheu-se o anfiteatro de público muito maior que
o de seus alunos regulares: professores, ex-alunos, advogados, admiradores, os privilegiados que ouviram
por duas horas sua fascinante aula
de despedida. Falou sobre os quatro
grandes valores republicanos, aqueles que fundam o regime cujo princípio definidor deveria ser a virtude.
O primeiro é a Igualdade, a real,
baseada em condições concretas,
não a meramente formal ou jurídica
dos liberais. O que vem depois, a Liberdade, que pressupõe a Igualdade.
Em seguida, o derivado do mais forte impulso biológico desde a primeira infância, a Segurança, hoje necessariamente econômica. E, como coroa desses valores, a Solidariedade,
expressão jurídica da fraternidade
da Revolução Francesa, eco, por sua
vez, da pregação evangélica de que
todos os homens são irmãos.
Evocou os mais de 40 anos de magistério: como a severidade inicial
foi sendo abrandada pela doçura do
afeto aos alunos, ao aprender que
não precisava julgá-los, pois a vida,
esse "bicho-papão" da cantiga de ninar, não se esqueceria de fazê-lo,
que, afinal, só a vida encontra o caminho da própria vida. Terminou
sob flores e aplausos, com longa e
comovida ovação dos presentes em
pé, conscientes de que assistiam à
passagem de um faixo de luz.
Não tendo sido avisado, narro de
ouvido, contente de ver a virtude de
exceção, quase a que em outros tempos se chamaria de virtude em grau
heróico, reconhecida pelos que devem ao Fabio boa parte da formação
e dos valores que dão sentido à existência. Sei do que falo porque há
mais de 50 anos lhe acompanho o
exemplo, dos bancos da faculdade à
Conferência Vicentina de São Basílio Magno, da qual foi o animador
nas Arcadas, das visitas às famílias
pobres ao brilhante doutorado na
Universidade de Paris.
Maior vocação jurídica de nossa
turma, a Clovis Bevilaqua, de 1955 a
1959, titular indiscutível da cadeira
de Direito da Empresa, autor de livros e pareceres que fazem autoridade, não haveria limites para o que
Fabio poderia ter acumulado em riqueza, prestígio e honrarias. Em vez
disso, cedo preferiu liquidar a banca
de advocacia e dedicar-se aos direitos humanos, que passou a ensinar,
defendendo com desassombro as vítimas do terrorismo ditatorial, antes
e depois de sua destacada participação na Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese. Ao lado de seu tio, Evandro Lins e Silva, honrou o nome de
advogado, ao ajudar decisivamente a
pôr fim à perversão da República no
governo Collor.
Concebeu e fundou a Escola de
Governo, hoje espalhada pelos quatro cantos do Brasil e na qual, ano
após ano, dedica várias noites da semana a formar com desinteresse os
jovens que poderão um dia melhorar nossa lamentável vida pública.
Acaba de publicar pela Companhia
das Letras a obra de uma vida, "Ética
- Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno". É suma universal do
melhor que se poderia dizer do sentido da aventura humana na busca
dos valores que elevam a história na
convergência para síntese unificadora. A limpidez e transparência da
escrita fazem brotar páginas luminosas em que a filosofia, a história,
as sugestivas citações literárias desvelam ao leitor o que é Ética: o caminho para aprender a melhor viver, a
buscar não carreira ou êxito mas a
plenitude de vida nobre, que ajude
cada pessoa a realizar sua eminente
dignidade.
São aulas perenes que não se interrompem pela compulsória. Neste
Brasil de mensalões e sanguessugas,
são lições de vida, ao alcance dos que
buscam não só a verdade e pureza da
doutrina mas a coerência da prática
sem mancha de um mestre da ética
para o nosso tempo.
RUBENS RICUPERO, 69, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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