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OPINIÃO ECONÔMICA
Sobre ratos e homens
RUBENS RICUPERO
Quando o drama de Watergate deixava pouca dúvida
sobre seu inexorável desfecho, Nixon recebeu, para surpresa geral,
a adesão do governador do Texas, que, para isso, teve de mudar
de partido, coisa que não faz parte dos costumes políticos americanos, apesar de ser corriqueiro
nos nossos. Eu era então conselheiro na embaixada em Washington e lembro o comentário
do senador texano Ralph Yarborough: "É a primeira vez, desde a
criação do mundo, que se vê um
rato nadar em direção a um navio que está afundando!".
Olhando de perto, percebe-se
que é elogio a esses nossos injustiçados irmãos genéticos. Embora
partilhem conosco quase todas as
letras miúdas do DNA, não são
dados como os homens a nenhum
tipo de insensatez, muito menos à
tentação do suicídio. Já o mesmo
não pode ser dito dos seres humanos que se aferram a expectativas
manifestamente irrealistas, em
vias de abandono por todo o
mundo.
É o caso, por exemplo, da resistência que estaríamos a opor à
idéia de criar uma espécie de lei
internacional de concordata, que
permita a países em dificuldades
a suspensão ordenada de pagamentos, enquanto se busca, nos
credores, reescalonar ou reduzir
os compromissos da dívida. A
idéia foi avançada pela primeira
vez em 1986, pela Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (Unctad), e expandida e renovada nos relatórios da organização em 1998 e
2001. Aliás, tem cabido à Unctad
esse papel pioneiro de situar-se "à
frente da curva", sugerindo criativamente fórmulas como as que
foram finalmente adotadas para
a crise da dívida externa latino-americana dos 80. Dessa vez, repetiu-se o padrão das ocasiões
anteriores: as idéias são inicialmente descartadas como irresponsáveis pelos poderosos e bem
pensantes. Após alguns anos, os
problemas agravam-se, e acaba-se por aceitar o que antes se rejeitava, não se atribuindo naturalmente nenhum crédito aos autores originais.
Foi o que voltou a acontecer
agora. Após criticar por 15 anos
as sugestões da Unctad, o Departamento do Tesouro americano,
logo seguido pelo FMI, vem de
adotá-las, adicionando-lhes elementos que certamente não contribuirão para favorecer os devedores. De todo modo, é passo importante na direção certa. Surpreende, assim, que uma das primeiras oposições provenha de
país cujo presidente advoga há
anos no G-8 medidas de reforma
da arquitetura financeira internacional que diminuam a volatilidade corrente. Ora, a fim de mexer seriamente na arquitetura financeira e não limitar-se a uma
mão de tinta na fachada, não
basta ocupar-se da transparência
das informações ou da melhoria
da supervisão e regulação. É preciso atacar os dois problemas cruciais: a prevenção das crises financeiras e seu tratamento, uma
vez desencadeadas. A prevenção
requer sistema prudente de controle de capitais e o tratamento
não pode prescindir de algum tipo de concordata, aparentemente
opondo-se o Brasil a um e outro.
Como explicar a contradição?
Existem obviamente dificuldades práticas para implementar
iniciativa inovadora como a concordata. Elas não devem, contudo, justificar que se negue apoio
ao FMI para criar processo ordenado, conforme reconhece editorial do insuspeito "Financial Times" de 29 de novembro. No fundo, as relutâncias brasileiras
prendem-se ao temor de que tal
reforma contribua adicionalmente para afugentar investidores e fazer secar a já minguada
corrente de financiamentos externos. É aqui que se localiza o x
do problema: faz sentido continuar a esperar que os mercados
financeiros voltem a abrir-se significativamente para países como
o nosso?
Confirmando tendência inaugurada em 97, os recursos estão
fugindo do risco dos países em desenvolvimento. Segundo dados
do FMI, esses países terão no corrente ano perda líquida de US$
1,4 bilhão, em comparação com o
saldo positivo de US$ 234 bilhões
em 96. Aquele ano marcou a maré alta da liquidez financeira internacional, estimulando no Brasil e na Argentina a temeridade
do câmbio rígido. Acreditava-se
que os financiamentos tinham
vindo para ficar e que os déficits
de conta corrente haviam deixado para sempre de ser problema.
Descobrimos a duras penas que
não era assim, que a maré ia e vinha, podendo deixar-nos a seco.
É possível que ela volte a subir,
mas será que, nessa base aleatória, algum genuíno integrante da
família dos murídeos (Rattus
norvegious) teria a coragem de
nadar para o periclitante barco?
Não seria mais sensato seguir o
caminho pregado com sabedoria
e equilíbrio por meu colega de coluna, Paulo Nogueira Batista Jr.:
reduzir, por meio de saldos comerciais, o déficit corrente a menos de 2% do PIB e pôr em marcha sistema de controles razoáveis de capitais? Isso não impediria que continuássemos a usar
com comedimento a poupança
externa de que necessitamos, à
espera de que uma "transição
lenta, gradual e segura" nos permita ingressar um dia na Terra
Prometida dos afortunados países dotados de "investment grade" (isto é, considerados seguros
pelas agências de avaliação de
risco).
Seja como for, é em torno dessa
idéias, e não das encarnadas no
mercado financeiro e em segmentos expressivos do Banco Central,
que se está tecendo novo consenso nacional sobre qual a estratégia externa mais conveniente para o Brasil. Em homenagem ao
presidente, deve-se reconhecer
que, após haver referendado os
erros da estratégia dos primeiros
quatro anos e meio, vem ele mesmo inteligentemente guiando a
retificação do curso, ao menos no
terreno da política comercial e no
nível do discurso oficial.
Em outros domínios como o financeiro, ainda se está mais nas
veleidades do que nas mudanças
efetivas. É que, nesse campo, as
divergências são reais e profundas, mesmo se não é do interesse
de nenhuma das partes envolvidas patenteá-las de forma explícita. Daí a utilidade das raras
ocasiões em que os argumentos
vêm à luz, como na presente discussão sobre a proposta do FMI,
que mereceu até artigo do presidente e do diretor da área externa do Banco Central.
Não sou dos que tratam com
ironia ou excessivo espírito crítico
as contradições entre o discurso
externo e a política efetivamente
seguida em matéria de integração econômica e financeira com a
economia global. Elas são expressão de problemas árduos, quase
diria de dilemas de difícil solução. Nada, porém, seria pior do
que marcharmos para um falso
consenso sobre os fins, que apenas sirva para mascarar a falta
de consenso sobre os meios.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista
em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).
E-mail: rubensricupero@hotmail.com
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