São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2007

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Stones encontram abrigo fiscal na Holanda

País tem legislação tributária que favorece grupos e empresas que ganham royalties e atrai cada vez mais artistas

Bandas como Rolling Stones e U2 deixam de pagar dezenas de milhões de dólares por ano ao transferirem ganhos ao país


Frank Franklin II -10.mai.05/Associated Press
O guitarrista Keith Richards e o cantor Mick Jagger, dos Stones, que transferem ganhos à Holanda para pagar menos impostos


LYNNLEY BROWNING
DO "NEW YORK TIMES", EM AMSTERDÃ

No segundo trimestre de 2006, Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones conhecido pelo apego à diversão e pelo rosto vincado de rugas, caiu de uma árvore em um hotel numa praia de Fiji, batendo a cabeça contra o tronco.
Richards foi transportado de avião à Nova Zelândia, onde um cirurgião conduziu um tratamento de emergência para impedir que seu cérebro sofresse um inchaço perigoso. Embora o acidente o tenha forçado a cancelar parte dos shows programados para o terceiro trimestre, Richards, 62, sobreviveu sem maiores danos à queda.
"Não foi meu primeiro contato com a morte", ele disse mais tarde à revista "Rolling Stone". "Acho que a lição que aprendi foi não me sentar mais no alto de uma árvore."
O que dois dos outros Rolling Stones, Mick Jagger e Charlie Watts, aparentemente aprenderam com a experiência de Richards foi que era hora de pensar em seus herdeiros. Para isso, os velhos roqueiros optaram por um discreto contador holandês, Johannes Favie, cuja companhia, o Promogroup, os vêm ajudando a minimizar sua carga tributária há 30 anos.
E assim, em agosto, de acordo com documentos mantidos no Handelregister, o registro comercial da Holanda, o Promogroup ajudou os três músicos a estabelecer duas fundações privadas, sediadas na Holanda, que permitirão que seus herdeiros recebam os ativos que eles controlam sem precisar pagar impostos quando os três vierem a morrer.
Os outros abrigos tributários que o Promogroup ajudou o trio a criar na Holanda já deram frutos consideráveis. Ao longo dos últimos 20 anos, os músicos pagaram só US$ 7,2 milhões em impostos sobre o faturamento de US$ 450 milhões que eles canalizaram via Amsterdã. Isso representa uma alíquota tributária da ordem de 1,5%, muito abaixo dos 40% vigentes no Reino Unido.
Os Stones estão longe de ser as únicas celebridades que protegem seu patrimônio na terra das tulipas, moinhos e Rembrandt. O U2 transferiu ativos lucrativos para Amsterdã, assim como outros cantores pop e atletas conhecidos, todos os quais usaram ou continuam a usar os benefícios fiscais conferidos pelo código tributário holandês, de acordo com um advogado tributarista que pediu que seu nome não fosse revelado, devido a acordos de confidencialidade com clientes.

Gravadoras
Entre as empresas do setor de entretenimento e de outros ramos que extraem benefícios generosos do regime tributário holandês, estão a gravadora EMI, uma das gigantes do setor, e a CKX, que controla participações no programa "American Idol", no espólio de Elvis Presley e nas atividades de David Beckham, astro do futebol.
Quando o assunto é atrair patrimônio de celebridades que desejam se proteger contra os impostos, as ilhas Cayman e outros paraísos fiscais caribenhos clássicos estão perdendo prestígio, de acordo com especialistas tributários. Embora paraísos fiscais "offshore" à moda antiga -com clima quente, peixes tropicais, holdings criadas por encomenda (e sediadas em caixas postais) e transparência ou regulamentação muito limitadas- ainda atraiam dinheiro, os interessados que os procuram, dizem tributaristas e executivos financeiros do ramo do entretenimento, são os fundos de hedge e grupos de capital privado, que desejam proteção contra impostos sobre os seus enormes lucros.
Mas, para lucros derivados de propriedades intelectuais, a Holanda se tornou o paraíso fiscal predileto. Com celebridades emprestando seus nomes e imagens a linhas de roupas, licenciando suas canções de sucesso para uso publicitário, procurando papéis em Hollywood e se envolvendo em outras empreitadas que geram receita tributável significativa, o sistema holandês, que não tributa os royalties, oferece proteção muito conveniente.
À medida que se dirigem a Amsterdã, as celebridades estão se inspirando nas táticas adotadas pelas grandes empresas, que também empregam abrigos tributários na Holanda para ajudar a reduzir ou eliminar os impostos sobre royalties referentes a patentes, outra propriedade intelectual.
"Os caribenhos estão pensando nos lucros de transações financeiras, não nos royalties, de modo que os países europeus de menor porte, como a Holanda, precisam ser criativos, em termos financeiros", disse David Pullman, executivo de banco de investimento em Nova York que atende a artistas e esportistas. "Eles procuram os clientes de maior destaque, e não querem ser vistos como lugares escusos, à moda das pequenas nações caribenhas."
Muitas das grandes empresas multinacionais do planeta, entre as quais Coca-Cola, Nike, Ikea e Gucci, estabeleceram holdings na Holanda nos últimos anos, para aproveitar vantagens tributárias bastante parecidas às obtidas pelos Rolling Stones e pelo U2. Um outro fator de atração é o fato de que o Ministério das Finanças da Holanda recentemente declarou que está disposto a promulgar com antecedência decisões que, em termos práticos, legitimam as proteções tributárias.
A Sun Microsystems, gigante dos computadores e software dos EUA, opera companhias de holding na Holanda e demonstra franqueza quanto aos motivos. Até recentemente, no site da Agência de Investimento Estrangeiro da Holanda, em www.nfia.com, a Sun oferecia o seguinte endosso às confortáveis leis tributárias do país: "Encaremos os fatos: perguntem a uma empresa estrangeira por que, de fato, ela está aqui, e quase todas responderão que é devido às vantagens tributárias. A combinação entre esse fator e a estabilidade política do país, sua força de trabalho capacitada e poliglota e sua infra-estrutura estável de transportes e telecomunicações é por tudo isso que estamos aqui".
A Holanda abriga cerca de 20 mil "empresas de caixa postal", a gíria empregada por aqui para designar as empresas de fachada estabelecidas por companhias e indivíduos estrangeiros que as empregam para reduzir os impostos que pagam sobre royalties, dividendos e juros, de acordo com relatório do Centro de Pesquisa de Empresas Multinacionais (Somo), uma organização sem fins lucrativos sediada em Amsterdã que monitora as práticas empresariais de grandes grupos. Em termos mundiais, cerca de 1.165 empresas usam a Holanda como refúgio tributário para reduzir ou eliminar os impostos que deveriam pagar sobre royalties e patentes, diz a Somo.
O relatório, que critica a transformação da Holanda em paraíso fiscal, diz que o número de " "empresas de caixa postal" vem crescendo rapidamente nos últimos anos" e que as proteções tributárias solapam os esforços dos governos de todo o mundo para "garantir a criação de um campo competitivo limpo, no qual cada país receba proporção justa dos impostos que lhe são devidos em função de atividades comerciais empreendidas em seu território".

Bono
Muitas vezes mencionado como candidato ao Prêmio Nobel da Paz ou, talvez menos seriamente, à presidência do Banco Mundial, Bono, 46, o vocalista e líder do U2, já viajou pela África em companhia de importantes funcionários do governo dos Estados Unidos para fiscalizar as campanhas contra a Aids e convive com financistas e governantes ao discursar contra a pobreza mundial no Fórum Econômico Mundial, de Davos.
A riqueza do U2 também é bastante viajada e, como os Rolling Stones, o grupo descobriu modos sofisticados de encontrar abrigos internacionais para seu dinheiro. Quando a Irlanda anunciou, no segundo trimestre de 2006, que reduziria acentuadamente os benefícios fiscais que o país vinha dando a músicos, pintores, escritores e escultores, a proposta representava ameaça ao U2, que fez da Irlanda sua base financeira por quase três décadas. Os roqueiros, nascidos e criados em Dublin, construíram sua fortuna com base em canções de sucesso e, parcialmente, nas leis irlandesas que perdoam os impostos devidos sobre os royalties.
No ano passado, o U2 detinha um patrimônio líquido de cerca de US$ 908 milhões, de acordo com a lista anual de pessoas mais ricas do jornal britânico "Sunday Times".
Em junho do ano passado, quando as vantagens tributárias da Irlanda estavam a um passo de expirar, o U2 seguiu o conselho de Paul McGuinness, que há muito tempo administra os negócios da banda, e transferiu seu ativo mais lucrativo -um catálogo de composições com sucessos como "Where the Streets Have No Name" e "It's A Beautiful Day"- da empresa de McGuinness, em Dublin, para o Promogroup, no coração da velha Amsterdã.
A sede do Promogroup fica em uma casa de tijolos construída quatro séculos atrás para abrigar mercadores de escravos e comerciantes de especiarias. Favie não respondeu a repetidos pedidos de entrevista. Até agora, sua empresa não apresentou nenhuma informação formal sobre o influxo de fundos vindos da U2 Ltd., a empresa holandesa que detém o controle sobre o catálogo da banda.
Em um bairro de Amsterdã conhecido como "a milha das finanças", não muito longe da sede do Promogroup, empresas holandesas como a TMF, EQ Management Services e Fortis Intertrust também atendem a clientes endinheirados e apreciadores das vantagens exclusivas de um paraíso fiscal.
Em seu site, a Fortis alardeia que seus clientes são "os maiores compositores, artistas e personalidades como músicos clássicos, artistas pop, DJs e modelos". A empresa diz que se especializa em oferecer "exploração de imagem eficiente em termos tributários", entre outros serviços.
"Muitas das pessoas que trabalham em esportes sensíveis a patrocínios estão procurando esse tipo de serviço, como tenistas, jogadores de futebol", disse Frank Lhoest, especialista em propriedade intelectual na Fortis. O governo holandês também está envolvido, e vem negociando uma extensa rede de tratados tributários com países de todo o mundo que tornam mais fácil transferir dinheiro de empresas holandesas a subsidiárias estrangeiras e criar mais incentivos fiscais.
"Para os músicos de fora dos Estados Unidos que recebem parte substancial de sua renda de fontes de royalties não-americanas, o uso dos acordos de licenciamento cruzado vigentes na Holanda ajuda a obter significativa economia de impostos", disse Jeffrey L. Rubinger, do escritório Holland & Knight, de Fort Lauderdale, Flórida.
As vantagens oferecidas pela Holanda são simples. Royalties transferidos ao país ou pagos a uma holding holandesa estão isentos de impostos. Ainda que a alíquota nominal de imposto paga pelas empresas do país seja de 30%, analistas dizem que outras vantagens tributárias conferidas reduzem essa carga de maneira significativa.
"Para 90% das pessoas que agem assim, a motivação para o uso dessas estruturas é minimizar ou evitar impostos", disse Ton Smit, tributarista da Tax Consultants International, empresa de Roterdã que atende a celebridades, esportistas e empresas multinacionais.

Tolerância
Historicamente, a Holanda sempre olhou para fora, construindo elos comerciais mundiais e criando a primeira Bolsa de Valores do mundo, no século 17. Essa postura gerou generosidade, abertura e clemência, que se tornaram lendárias. A prostituição e algumas drogas são regulamentadas, mas legais. Os benefícios sociais bancados pelo Estado são substanciais. O governo oferece créditos fiscais até mesmo a estudantes de bruxaria. "Isso não é motivado apenas por impostos. Trata-se da nossa cultura... Os holandeses são comerciantes em todo o mundo", disse Smit.
Alguns especialistas vêem um lado mais sombrio na transformação da Holanda em paraíso fiscal requisitado. Em 2000, a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) apontou o país como um dos cinco maiores paraísos fiscais entre as nações industrializadas e condenou seu governo por estimular a "concorrência tributária" internacional, ou seja, a busca pela menor tributação.
A Holanda reforçou certas regras, exigindo mais substância de empresas abertas no país com o propósito único de reduzir ou eliminar impostos. Mas analistas dizem que os problemas persistem.


Tradução de PAULO MIGLIACCI

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