São Paulo, sábado, 10 de julho de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

A geladeira do Mercosul

GESNER OLIVEIRA

Lula é o presidente do Mercosul até dezembro. A presidência "pro-tempore" que o Brasil assumiu ao final da 26ª Reunião de Cúpula de presidentes e ministros dos países do Mercosul, realizada nesta semana na cidade argentina de Puerto Iguazú, promete muita dor de cabeça. A guerra aos produtos de linha branca do Brasil declarada pelo presidente da Argentina, Néstor Kirchner, é apenas mais um episódio de uma série de disputas comerciais.
Além das licenças especiais de importação para geladeiras e máquinas de lavar impostas pela Argentina e suspensas até quarta-feira, criou-se tarifa provisória de 21% sobre aparelhos de TV fabricados na Zona Franca de Manaus, bem como a ameaça de restrições para mais produtos, como frangos e calçados. Somem-se a isso outros dispositivos, como a sobretaxa ao açúcar, e a existência de acordos "voluntários" que impõem cotas na exportação de produtos da cadeia têxtil.
As dificuldades do Mercosul têm várias origens. A principal delas reside naturalmente na fragilidade e na descoordenação macroeconômica de seus membros. Sem um mínimo de convergência das políticas macro, as relações comerciais ficam sujeitas a graves desequilíbrios, conforme se viu quando o Brasil adotou o câmbio flutuante, em 1998/99, e a Argentina manteve por algum tempo o câmbio fixo.
Mas a natureza e as circunstâncias do acordo que deu origem ao Mercosul explicam parte dos problemas. Em tese, o Mercosul é uma união aduaneira. Uma união aduaneira é caracterizada pelo tratamento uniforme aos produtos de terceiros países. Isto é, há uma estrutura comum de tarifas de importação. No Mercosul, há a TEC (Tarifa Externa Comum).
No entanto, como os países-membros não chegaram a um consenso acerca de qual deveria ser o tratamento comercial para vários itens, há muitas exceções ou "perfurações" à TEC. Na prática, portanto, o Mercosul ainda não é aquilo que na teoria de comércio internacional se denomina união aduaneira. Trata-se, na realidade, de uma união aduaneira em formação que ainda guarda características de uma área de livre comércio na qual as tarifas de importação entre os membros são eliminadas, mas os bens de terceiros países são taxados de forma diferenciada.
A inexistência de uniformidade de tratamento alfandegário na fronteira impõe um controle interno mais rigoroso, que em tese deveria ocorrer mediante um código claro de "regras de origem". Acordos de regras de origem servem para impedir que um bem importado de um país como a Coréia da Sul não possa entrar com uma alíquota baixa pelo Paraguai e depois se beneficiar de alíquota zero e ingressar no Brasil. No entanto, tal sistema impõe controles onerosos que retiram, em parte, as vantagens do livre comércio entre os países-membros.
Além da necessidade de controle interno, as transações entre os países ainda é prejudicada pela cobrança múltipla da tarifa externa comum. Isto é, o bem é taxado pela TEC não apenas ao entrar no Mercosul mas ao cruzar cada fronteira nacional.
Não bastassem as dificuldades internas, a política de alianças e acordos também é retardada pelas óticas distintas de cada membro. É surrealista, por exemplo, que um acordo com a República Popular da China possa ser de alguma forma dificultado porque o Paraguai tem interesse em manter relações comerciais com Taiwan. As diferentes perspectivas de Brasil e Argentina também afetam a marcha das negociações do acordo Mercosul-União Européia.
Enquanto o Mercosul enfrenta toda sorte de problemas internos, o México se encontra em posição privilegiada. O presidente Vicente Fox pode fazer uma política de boa vizinhança ao pleitear a posição de membro associado do Mercosul, enquanto mantém seu acesso exclusivo ao rico mercado dos EUA e do Canadá por meio do Nafta (sigla em inglês para Acordo de Livre Comércio da América do Norte).
Para se firmar enquanto região promissora para as próximas décadas, o Mercosul precisará de menos discursos, bravatas e medidas arbitrárias e de mais pragmatismo. A ênfase deveria recair na integração de fato, mediante projetos de infra-estrutura e a adoção de mecanismos próprios de resolução rápida e desburocratizada de conflitos comerciais.
É precisamente em relação a este último ponto que remanesce uma esperança, com o anúncio de que o Tribunal Permanente de Revisão para Solução de Controvérsias entrará em operação. Se isso ocorrer, a reunião de Puerto Iguazú não terá sido uma perda de tempo.


Gesner Oliveira, 47, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br

E-mail: gesner@fgvsp.br


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