São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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LUÍS NASSIF

A palavra do presidente

Na medida em que a campanha avança, os candidatos sofrem uma exposição brutal, que expõe as ambiguidades que possam vir a ter.Enquanto pré-candidato, é possível ao político mudar a opinião ao sabor dos públicos, sem ser percebido. Em campanha, não. E, quando o candidato exagera na esperteza e na falta de coerência, cria uma armadilha fatal para si próprio.
É o que está acontecendo com o candidato Ciro Gomes. A montanha de contradições em que se enredou nos últimos tempos, a facilidade com que vai recorrendo ao método tentativa-e-erro para corrigir afirmações econômicas temerárias, a sucessão de afirmações contraditórias em que se meteu vão se voltar inevitavelmente contra ele.
A imagem de que não tem coerência, para dizer o mínimo, já chegou aos formadores de opinião e começa a se derramar por outros setores. Ainda não chegou ao grosso do eleitorado, mas é um processo irreversível: se não afetá-lo no primeiro turno, será no segundo; se não for no segundo, será no exercício da Presidência, caso seja eleito. E aí o problema fica grandioso.
Em política, algum grau de incoerência é interpretado como esperteza. Mas excesso de esperteza é fatal em uma área na qual palavra e compromissos são elementos essenciais. Nem se trata mais de confiar ou não na palavra de Ciro. Chegou-se a um ponto em que não se sabe mais qual é a palavra de Ciro. Quem é ele? O modernizador que quer um Estado regulador ou o sujeito que anuncia a estatização de toda a rede do SUS? O sujeito que quer inserir o país competitivamente no mundo ou o candidato que acha que toda forma de flexibilização da legislação trabalhista significa ferir direitos dos trabalhadores?
O que leva um candidato a presidente, um dia depois de um acordo com o FMI, afirmar que pretende mudar o modelo econômico? A posição de Ciro e a de Lula e Serra lembra em muito a história de Salomão e das duas mães que disputavam uma criança. Quando Salomão ameaçou cortar a criança ao meio, a mãe verdadeira desistiu, a outra aceitou. Aparentemente, para atingir a Presidência, pouco importa a Ciro se a criança será retalhada ou não.
Dentro do seu método tentativa-e-erro não adianta vir amanhã explicar que ao falar em "mudança de modelo" queria apenas se referir a uma redução na vulnerabilidade externa. Melhorar exportações e tornar o país menos vulnerável ao capital externo não é o mesmo que mudar o modelo econômico.
Como não adianta afirmar que vai fechar as contas CC-5 e, depois, explicar que quis dizer apenas que pretende impedir o uso da conta para dinheiro sujo. Se afirmou de fato que ia fechar a CC-5, criou uma crise enorme em cima de uma afirmação temerária. Se quis dizer apenas que iria impedir o dinheiro sujo através da CC-5, criou uma crise em cima de uma obviedade.
Não pode uma figura pública apostar assim na falta de memória geral e ser permanentemente esperto, livrando-se de cada armadilha pelo método de desdizer o que disse antes. Enreda-se na sucessão de versões. Ciro já chamou Fernando Henrique de "ser desprezível" e, em pelo menos uma ocasião, de "corrupto". Para não ficar com a imagem de vingativo, afirma agora que nunca fez políticas de ataques pessoais. Sua passagem pelo Ministério da Fazenda notabilizou-se por um conflito por dia. Agora, diz que sempre foi negociador nato e que praticou a negociação na Fazenda.
Declarou que reatou com o senador Antonio Carlos Magalhães na época da morte do seu filho, e se descobre que xingou ACM depois disso. Na época, usou como acusação contra ACM o fato de o senador ter defendido o ex-presidente Fernando Collor. No entanto, dois meses antes da campanha do impeachment, era Ciro quem defendia Collor, sustentando que ele estava limpando os podres do governo.
É mínima a diferença entre um estadista e um mitômano. Ciro terá que decidir em que categoria quer ser reconhecido.

E-mail - lnassif@uol.com.br



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