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ANÁLISE
Vizinho vira "latino" na relação com Brasil
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
As contínuas queixas argentinas contra a suposta ou
real invasão de produtos brasileiros "não são produto da maldade
dos argentinos, mas das conveniências estratégicas do país".
A avaliação é de Gilberto Dupas,
um dos principais especialistas
brasileiros em assuntos internacionais, com muita quilometragem na análise do Mercosul.
Conveniência estratégica ditada
pelo seguinte fator: "A Argentina
foi o último país da América Latina a se tornar de fato latino-americano (no sentido de seus indicadores sociais terríveis). Por isso,
atua agora como tal, cobrando do
sócio mais rico cotas, restrições e
que não invada seu mercado",
completa Dupas. É de certa forma
o que o Brasil faz nas negociações
com os países ricos.
O Brasil deve aceitar tais cobranças? Aí, as respostas variam.
Dupas acha que sim. "A diplomacia brasileira deveria compreender a situação argentina, e
não atacá-la. O problema é a impaciência da opinião pública."
Parte da "opinião pública" revela de fato impaciência. Antonio
Donizete Beraldo (Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil) acha o Itamaraty
"condescendente demais".
Cita um caso específico, o do
açúcar, único produto que ficou
fora das regras do Mercosul, porque a Argentina o considera sensível. E, do ponto de vista argentino, é mesmo: na região centro-sul
do Brasil, a mais eficiente, a tonelada do açúcar sai por US$ 100. Na
Argentina, por US$ 260.
É óbvio que liberalizar o comércio do açúcar no Mercosul levaria
a uma invasão do produto brasileiro no mercado vizinho pela
contundente diferença de preço.
"Não queremos invadir a Argentina com nosso açúcar, mas está
se eternizando uma situação grave no Mercosul", diz Beraldo.
Mais grave ainda porque o trigo
(em que a situação era exatamente inversa) foi liberalizado. Conseqüência, pelas contas da CNA: a
produção brasileira caiu de 6 milhões de toneladas para 2,5 milhões, "e só agora volta a se recuperar", diz Beraldo.
Vizinho se recupera
Para o Itamaraty, responsável
direto pela condução das negociações, a visão é conhecida: a relação com a Argentina é estratégica
e, portanto, vai muito além de geladeiras, freezers e lavadoras, alguns dos produtos que causaram
forte "ruído" nas relações bilaterais nos últimos meses.
Relação estratégica por vários
motivos: primeiro, porque o Brasil, ao contrário da Argentina,
quer falar não apenas por ele, mas
pelo Mercosul (e, se possível, pela
América do Sul). Romper o bloco
é impensável.
Segundo, um ponto mais conjuntural: a União Européia só tem
mandato para negociar com o
bloco Mercosul, não com cada
país-membro isoladamente.
Rompido o Mercosul, desaparece
uma das negociações prioritárias
para a diplomacia brasileira (o fato de que os entendimentos estão
bloqueados não lhes retira da lista
de prioridades).
Por isso, o Itamaraty trabalha
com a mesma hipótese de Dupas:
a Argentina não está crescendo,
mas apenas recuperando-se do
terremoto de 2001/2 (desvalorização, moratória etc). Recém está
chegando aos níveis de produção
econômica de 1998, quando se
iniciou uma devastadora e prolongada recessão. Quer continuar
crescendo, para o que necessita
proteger certos setores e ter mercado no Brasil, principal sócio.
A metáfora que se ouve entre diplomatas brasileiros é a de que
não se pode manter uma sociedade se um dos dois principais sócios se sente desconfortável.
A pergunta seguinte inevitável é
esta: a partir de que momento o
Brasil é que passará a sentir-se
desconfortável? Tal momento
não está à vista, responde o governo brasileiro.
Para Dupas, o problema não é
de limites, mas de falência do esquema de complementaridade
entre as duas economias. O Mercosul só terá uma sobrevida, acha
o especialista, se conseguir crescer
para toda a América do Sul, adensando a cooperação regional.
Para tanto, o eixo principal é o
de infra-estrutura. Dupas aponta
três projetos como vitais para a
integração física sul-americana: o
corredor do Pacífico, o desenvolvimento da Amazônia e a integração energética.
É a mesma visão do governo,
desde a administração Fernando
Henrique, mas que caminha, necessariamente, a passos lentos,
pela complexidade da operação.
Até quando a opinião pública
está disposta a esperar para que o
Mercosul rompa suas divergências por uma via ou a outra? Mesmo um crítico da complacência
do Itamaraty, como Donizete Beraldo, é condescendente: "Não diria que o Brasil passou dos limites
nas concessões à Argentina".
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