São Paulo, sexta-feira, 10 de setembro de 2004

Texto Anterior | Índice

ANÁLISE

Vizinho vira "latino" na relação com Brasil

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

As contínuas queixas argentinas contra a suposta ou real invasão de produtos brasileiros "não são produto da maldade dos argentinos, mas das conveniências estratégicas do país".
A avaliação é de Gilberto Dupas, um dos principais especialistas brasileiros em assuntos internacionais, com muita quilometragem na análise do Mercosul.
Conveniência estratégica ditada pelo seguinte fator: "A Argentina foi o último país da América Latina a se tornar de fato latino-americano (no sentido de seus indicadores sociais terríveis). Por isso, atua agora como tal, cobrando do sócio mais rico cotas, restrições e que não invada seu mercado", completa Dupas. É de certa forma o que o Brasil faz nas negociações com os países ricos.
O Brasil deve aceitar tais cobranças? Aí, as respostas variam.
Dupas acha que sim. "A diplomacia brasileira deveria compreender a situação argentina, e não atacá-la. O problema é a impaciência da opinião pública."
Parte da "opinião pública" revela de fato impaciência. Antonio Donizete Beraldo (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil) acha o Itamaraty "condescendente demais".
Cita um caso específico, o do açúcar, único produto que ficou fora das regras do Mercosul, porque a Argentina o considera sensível. E, do ponto de vista argentino, é mesmo: na região centro-sul do Brasil, a mais eficiente, a tonelada do açúcar sai por US$ 100. Na Argentina, por US$ 260.
É óbvio que liberalizar o comércio do açúcar no Mercosul levaria a uma invasão do produto brasileiro no mercado vizinho pela contundente diferença de preço. "Não queremos invadir a Argentina com nosso açúcar, mas está se eternizando uma situação grave no Mercosul", diz Beraldo.
Mais grave ainda porque o trigo (em que a situação era exatamente inversa) foi liberalizado. Conseqüência, pelas contas da CNA: a produção brasileira caiu de 6 milhões de toneladas para 2,5 milhões, "e só agora volta a se recuperar", diz Beraldo.

Vizinho se recupera
Para o Itamaraty, responsável direto pela condução das negociações, a visão é conhecida: a relação com a Argentina é estratégica e, portanto, vai muito além de geladeiras, freezers e lavadoras, alguns dos produtos que causaram forte "ruído" nas relações bilaterais nos últimos meses.
Relação estratégica por vários motivos: primeiro, porque o Brasil, ao contrário da Argentina, quer falar não apenas por ele, mas pelo Mercosul (e, se possível, pela América do Sul). Romper o bloco é impensável.
Segundo, um ponto mais conjuntural: a União Européia só tem mandato para negociar com o bloco Mercosul, não com cada país-membro isoladamente. Rompido o Mercosul, desaparece uma das negociações prioritárias para a diplomacia brasileira (o fato de que os entendimentos estão bloqueados não lhes retira da lista de prioridades).
Por isso, o Itamaraty trabalha com a mesma hipótese de Dupas: a Argentina não está crescendo, mas apenas recuperando-se do terremoto de 2001/2 (desvalorização, moratória etc). Recém está chegando aos níveis de produção econômica de 1998, quando se iniciou uma devastadora e prolongada recessão. Quer continuar crescendo, para o que necessita proteger certos setores e ter mercado no Brasil, principal sócio.
A metáfora que se ouve entre diplomatas brasileiros é a de que não se pode manter uma sociedade se um dos dois principais sócios se sente desconfortável.
A pergunta seguinte inevitável é esta: a partir de que momento o Brasil é que passará a sentir-se desconfortável? Tal momento não está à vista, responde o governo brasileiro.
Para Dupas, o problema não é de limites, mas de falência do esquema de complementaridade entre as duas economias. O Mercosul só terá uma sobrevida, acha o especialista, se conseguir crescer para toda a América do Sul, adensando a cooperação regional.
Para tanto, o eixo principal é o de infra-estrutura. Dupas aponta três projetos como vitais para a integração física sul-americana: o corredor do Pacífico, o desenvolvimento da Amazônia e a integração energética.
É a mesma visão do governo, desde a administração Fernando Henrique, mas que caminha, necessariamente, a passos lentos, pela complexidade da operação.
Até quando a opinião pública está disposta a esperar para que o Mercosul rompa suas divergências por uma via ou a outra? Mesmo um crítico da complacência do Itamaraty, como Donizete Beraldo, é condescendente: "Não diria que o Brasil passou dos limites nas concessões à Argentina".


Texto Anterior: Saiba mais: Com carro menor, fábrica brasileira tem expansão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.