São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

O que pensam os "justiceiros"

Tenho recebido muitos e-mails a respeito das colunas dos últimos dias, defendendo um julgamento isento para os assassinos do índio Galdino. Qualquer leitura imparcial constatará que não estou advogando sua absolvição, mas o direito dos jurados de apreciar as provas serenamente, avaliar agravantes e atenuantes, sem se fiar nas versões parciais da mídia. E, depois disso, proferir a sentença, qualquer que seja ela.
O primeiro impulso do jornalista, nesses casos polêmicos, é publicar os e-mails de apoio -que têm sido vários, reconfortantes e equilibrados. Mas a parte mais interessante para entender esses processos de catarse são os e-mails contra, dos "indignados".
O que pensa uma pessoa que não aceita que um criminoso possa ter um julgamento isento? Contra quem ela deseja, de fato, investir para ser tomada de uma indignação quase irracional quando se depara, em meio à unanimidade de julgamentos, com uma só voz dissonante? É bom tema para cientistas e psicólogos sociais.
O leitor J.K. recorre a uma das versões mais correntes, de que os rapazes são filhos de "figurões de Brasília". Esse elemento está em praticamente todas as manifestações. "Será que, se os jovens do caso Galdino não fossem filhos de figurões de Brasília, o senhor estaria tão empenhado em que a mídia os tratasse com "neutralidade'?" Fui o primeiro a defender as vítimas dos episódios Escola Base e bar Bodega, mas não vem ao caso.
Em muitos e-mails -como é o caso do leitor P.A.L.-, o sacrifício ritual dos rapazes permite malhar figurativamente o "governo". "Governo", na maioria dos casos, é visto como uma entidade abstrata, que sintetiza todas as mazelas do mundo, toda injustiça, toda opressão. Afinal, nenhum dos rapazes -nem seus pais- pertence ao "governo" nem à chamada "elite de Brasília". Ao governo, pertence o presidente FHC, que -para vergonha do intelectual FHC- sancionou o linchamento.
Os defensores do direito absoluto das maiorias são, por definição, propensos ao autoritarismo. Alguns disfarçam, outros são bastante explícitos, como é o caso do leitor em questão: "É revoltante que um jornal como a Folha abra seu espaço, por três dias seguidos, para um senhor chamado Luís Nassif fazer a apologia de quatro assassinos! (...) De minha parte espero uma posição da Folha a respeito desse episódio, uma vez que penso seriamente em suspender minha assinatura".
Esse tipo de público não se prende muito a análises críticas de fatos. Busca a catarse, e alguns perdem o prumo quando acontece algo que atrapalhe essa celebração ritual. Em alguns casos, mais raros, os leitores não extravasam frustrações nem buscam outros inimigos na "malhação dos Judas", mas advogam simplesmente a lei de talião -o famoso "olho por olho", ultrapassado pelos processos judiciais modernos. É o caso do leitor G: "Li seu artigo hoje e gostaria de lhe dizer que, segundo a Bíblia, aqui colhemos o que semeamos. Podemos (e devemos) perdoar nossos inimigos, como nos diz Jesus Cristo, mas Deus não vai deixar de puni-los".
Esse sentimento -de que o processo judicial, o contraditório (ou seja, contrapor os fatos), é uma maneira de evitar a punição- está presente em boa parte dos e-mails, demonstrando o descrédito na Justiça. Diz o leitor C.: "O "coitadismo" não pode prevalecer sobre a idéia de Justiça. E será que o que você chama de linchamento não é simplesmente uma reação legítima diante da verdade incontroversa dos fatos apurados?". Mesmo sem ter consultado os autos, o leitor considera a verdade "incontroversa", inclusive acerca da motivação e dos antecedentes dos jovens, mostrando o excepcional poder de convencimento da mídia.
É evidente -e não poderia ser diferente- que no meio dos e-mails apareceriam os membros das torcidas organizadas de futebol. Como o leitor A.C.S., que mandou o e-mail todo em maiúsculas: "LUIS NASSIF, CADA VEZ MAIS V. TORNA-SE UM JORNALISTA CHAPA-BRANCA. DEFENDEU A CPMF, ESTÁ DEFENDENDO ASSASSINOS FILHINHOS DE JUÍZES. AFINAL, QUEM LHE PAGA? A FOLHA DE SP, PARA UM JORNALISMO ISENTO, COERENTE, JUSTO, OU ALGUM PISTOLÃO DO GOVERNO FEDERAL?".
Fazer parte dessas maiorias autoritárias expõe seus membros a companhias desse naipe. No fundo, é apenas uma diferença de verniz.


Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br



Texto Anterior: Microsoft: Próxima audiência será em março
Próximo Texto: A novela do calote: Argentina força volta de recursos ao país
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.