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OPINIÃO ECONÔMICA
Injustiça ou desordem?
RUBENS RICUPERO
"Prefiro a injustiça à desordem" é, objetivamente, o que
dizem, parafraseando Goethe,
muitos editoriais acerca do problema de ordem pública no
qual se transformou a questão
agrária. É óbvio que não se diz
isso tão cruamente. Como entre
nós ninguém é de direita e todos se proclamam sociais-democratas, afirma-se favorecer
em teoria a reforma agrária. Na
prática, condena-se a única
maneira de torná-la possível:
uma dose prolongada e maciça
de mobilização popular.
Sempre fomos o país da conciliação e do compromisso e nos
orgulhamos de termos feito a
Independência, a Abolição, a
República, com o mínimo de
violência. Em lugar de batalhas
decisivas, nossas revoluções se
caracterizam por sábia dosagem de manobras e negaças,
dando tempo à avaliação de
forças e à adesão ao lado mais
forte. A Revolução de 30, por
exemplo, ficou famosa por Itararé, "a maior batalha da América do Sul que não houve", inspirando um humorista a tornar-se barão do mesmo nome.
Não há nada de errado, é claro, em economizar violência.
Acontece que essa economia
mascara a violência crônica da
"desordem estabelecida", estado permanente de opressão e
negação de direitos. A Independência nada mudou da estrutura social e econômica da Colônia. A Abolição só chegou na
25ª hora. Quando se fez finalmente, os ex-escravos não receberam compensação alguma
por uma vida esbulhada.
O compromisso se alcançou
muitas vezes com o sacrifício de
valores mais altos e a conciliação das elites se celebrou ao
preço do retardamento das reformas sociais. Mesmo quando
a gangorra do poder faz subir
caras novas, vencedores e vencidos se compõem e se cooptam
mutuamente à custa das maiorias. Tivemos por isso uma boa
performance econômica (no
passado), em contraste com o
pífio desempenho em matéria
social (sempre). Não é outra a
explicação de chegarmos ao século 21 com uma das piores distribuições de riqueza e de renda
do planeta.
Não é preciso sustentar que "a
violência é a parteira da História" para reconhecer que o conflito é com frequência condição
da mudança social. Assim é e
foi em toda parte, a começar
pelo modelo da moda, os Estados Unidos. Lá abomina-se a
intervenção estatal na economia (ao contrário de nós), mas
não se hesita em aplicar toda a
força do Estado, sem recuar
diante da guerra civil, para impor a mudança social (também
ao contrário de nós). Sua população negra está muito melhor
do que a nossa porque não acatou a segregação, que era a "ordem" estabelecida por lei até
1960, da mesma forma que o
apartheid na África do Sul. O
Congresso dos EUA aprovou a
nova lei dos direitos civis, a
ação afirmativa, mas não sem
que antes muita gente fosse
morta, inclusive Martin Luther
King.
O exemplo alternativo, da
mudança tempestiva prevenindo o conflito, nos vem igualmente dos americanos, cuja reforma agrária, o "Homestead
Act", de 1862, garantiu 160
acres de terras públicas a qualquer pessoa disposta a cultivá-las.
É esse o caminho para evitar o
conflito: fazer a reforma logo e
dentro da lei. Ora, no Brasil ela
às vezes parece que não se fará
nunca. Apesar de tímida, a lei é
aplicada com extrema morosidade pelo Judiciário. O resultado é que se estabelece um condicionamento perverso entre ocupação e desapropriação, a segunda só ocorrendo depois da
primeira. Criou-se, assim, situação explosiva comparável à
desorganização da escravatura
devido às fugas maciças de escravos.
Escravidão e latifúndio, as
duas forças geradoras da desigualdade brasileira, foram ligadas indissoluvelmente. No passado, a terra nada valia sem
escravos. Hoje, com a mecanização e a técnica, é o trabalhador que está sobrando e vai engrossar o exército de bóias-frias
ou de marginalizados das cidades, em busca de empregos que
a indústria não é mais capaz de
criar.
O que fazer? Reprimir? Só
agravará o problema. Em vez
de mandar a tropa de choque,
como propuseram contragrevistas em Minas que não recebiam
há meses, o correto é perguntar
como o governador Milton
Campos: "Não seria melhor enviar o carro pagador?"
Pedir que tenham paciência
funcionaria se apressasse ou catalisasse a reforma. Mas qual é
o brasileiro que acredita nisso?
Nossos governos são todos como
o coronel mineiro evocado por
Antônio Cândido, para o qual
em política só havia um crime:
perder as eleições. Para não cometer esse crime, estão prontos
a perpetrar todos os outros. Não
preciso enumerá-los, pois nosso
cotidiano está cheio deles. O
que nunca se viu é governo algum fazer esforço semelhante
em favor da mudança social. É
verdade que não se ganha eleição desse modo e até se arrisca
a perder os preciosos aliados
donos dos "grotões". Só resta,
portanto, para fazer os governos se mexerem, tornar a pressão insuportável.
Querer por isso culpar os
sem-terra é ignorar o país real
dos coronéis e dos jagunços, de
quatro séculos sim de invasões,
mas dos latifundiários em terras de índios e do governo. Só
quem vive na Lua negará que
foram sempre os fortes e prepotentes a tomar a iniciativa de
usar a violência contra índios,
negros, caboclos pobres, meninos de rua. Para citar outra vez
Antônio Cândido, a violência
não é essencial, ela é uma possibilidade constante e uma necessidade eventual de qualquer
ação política. Sobretudo quando ela se exerce em defesa própria, da vida ou da possibilidade de sobreviver numa ordem
fundada na justiça. Não compreender isso é repetir, sem querer, a ironia da advertência sobre o cão de guarda que vi numa casa em Québec: "Cet animal est très méchant: si on l'attaque, il se défend"; ou, em vernáculo: "Este animal é malvado: reage quando atacado."
Rubens Ricupero, 60, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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