São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Crise energética nos EUA tem indícios de manipulação

PAUL KRUGMAN

Uma velha piada: o fazendeiro ouve barulhos suspeitos em seu galinheiro. "Quem está aí?", pergunta. "Ninguém, só as galinhas", responde o ladrão. Satisfeito, o fazendeiro decide voltar a dormir.
Isso mais ou menos resume o comportamento das autoridades regulatórias federais dos Estados Unidos durante a crise de eletricidade na Califórnia. Como venho dizendo há mais de um ano, existem poderosos indícios circunstanciais de que a manipulação do mercado desempenhou um papel crucial naquela crise. As empresas de energia tinham motivo, meios e oportunidade para conduzir os preços da eletricidade à estratosfera. E a crise expôs exatamente as características que seriam de esperar em um caso no qual a manipulação de mercado tivesse desempenhado papel importante: boa parte da capacidade de geração de energia da Califórnia estava ociosa, durante um período em que os preços da energia no atacado chegaram a até 50 vezes o seu valor habitual.
No entanto, os representantes do governo federal, de George W. Bush para baixo, ofereceram à Califórnia nada mais do que sermões sobre as virtudes do livre mercado. A Comissão Federal de Regulamentação de Energia, que supostamente fiscaliza esse tipo de atividade, não descobriu nenhuma indicação de atividade ilícita. A comissão essencialmente perguntou às empresas de energia se elas estavam manipulando o mercado. "Quem, nós?", responderam, e ficou por isso mesmo. Meu estudo favorito, dentre os trabalhos da comissão, é aquele que conclui que as empresas de energia tinham capacidade de exercer "poder de mercado" e que seria lucrativo para elas agir dessa maneira, mas não havia indicações concretas de que o houvessem feito. Os executivos do setor de energia devem ser mesmo sujeitos bacanas!
A importância dos memorandos acusatórios da Enron revelados alguns dias atrás é que eles demonstram exatamente como os executivos do setor de energia são bacanas. Ao que parece, a Enron estava mesmo manipulando os mercados, por meio de esquemas que tinham apelidos engraçadinhos como "Menino Gordo" e "Estrela da Morte". Quem é que disse que os negócios não são uma diversão?
Os memorandos vieram à luz a despeito da evidente determinação da Comissão Federal de Regulamentação da Energia de evitar encontrar problemas. (Sabemos agora que o governo Bush na prática permitiu que a Enron nomeasse os membros da comissão.) Como disse um funcionário do governo da Califórnia, "a comissão é como um pai que se recusa a acreditar que seu filho adolescente está seguindo um mau caminho. Os memorandos são importantes porque equivalem a encontrar, na mochila desse filho, um diário onde ele admite ter roubado a loja de bebidas".
O grande risco agora é de que isso seja tratado puramente como mais uma história sobre a Enron. Não é correto. A Enron era basicamente uma empresa de trading e não uma produtora de eletricidade, e dessa forma seu impacto sobre os preços da eletricidade era necessariamente limitado. A verdadeira questão em jogo aqui envolve manipulação do mercado por uma série de produtores. As indicações circunstanciais de que existiu manipulação são esmagadoras. E, se ainda não surgiram memorandos incriminatórios, o que se poderia esperar? A história da Enron demonstra como é fácil para uma empresa encobrir seus rastros, especialmente quando as autoridades regulatórias a favorecem. Se a Enron não tivesse perdido a influência política de que dispunha, ao quebrar, ninguém teria ouvido falar do Menino Gordo ou da Estrela da Morte.
No entanto, esse caso apresenta um ângulo que envolve especificamente a Enron. Talvez eu tenha cometido uma injustiça contra Thomas White, secretário do Exército. Antes de assumir seu cargo, ele dirigiu a Enron Energy Services, uma divisão que era usada primordialmente -ou eu assim pensava- como maneira de gerar lucros falsos, inflando os preços das ações da Enron. Mas ao que parece a divisão tinha outro papel: criar transações falsas de energia, inflando os lucros reais da Enron à custa do Estado da Califórnia. Por que, exatamente, White continua exercendo um cargo público?
O que realmente me irrita nessa história, no entanto, não é o comportamento das empresas de energia. Não é nem sequer o comportamento do governo Bush, ainda que este tenha, além de manter-se ocioso enquanto a Califórnia era roubada em US$ 30 bilhões, explorado a miséria do Estado para promover seu plano de energia, absolutamente irrelevante. (Agora, é claro, o mesmo plano de energia se tornou essencial para a guerra contra o terror.)
Não, o que mais me incomoda é a posição assumida por tantos comentaristas políticos e de negócios: a de que a catástrofe da Califórnia tem pouco a dizer sobre os riscos da desregulamentação e o perigo de amar demais o livre mercado. O problema foi culpa da Califórnia, dizem, por ter criado um sistema "falho" -um termo vago que foge à necessidade de explicar o que aconteceu durante a crise. Na verdade, a principal falha era o fato de que o sistema não dispunha de salvaguardas contra manipulação do mercado.
E estou certo de que haverá um esforço determinado para ignorar até mesmo as revelações mais recentes. Afinal, por que deixar que os fatos sirvam de obstáculo para uma teoria tão bonita e tão conveniente politicamente?


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi originalmente publicado pelo jornal "The New York Times".

Tradução de Paulo Migliacci


Texto Anterior: Opinião Econômica - Gesner Oliveira: A barreiras internas às exportações
Próximo Texto: Panorâmica - Teles 1: Setor de equipamento opera pela metade
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.