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ARTIGO
Crise energética nos EUA tem indícios de manipulação
PAUL KRUGMAN
Uma velha piada: o fazendeiro ouve barulhos suspeitos em seu galinheiro. "Quem está aí?", pergunta. "Ninguém, só as
galinhas", responde o ladrão. Satisfeito, o fazendeiro decide voltar
a dormir.
Isso mais ou menos resume o
comportamento das autoridades
regulatórias federais dos Estados
Unidos durante a crise de eletricidade na Califórnia. Como venho
dizendo há mais de um ano, existem poderosos indícios circunstanciais de que a manipulação do
mercado desempenhou um papel
crucial naquela crise. As empresas
de energia tinham motivo, meios
e oportunidade para conduzir os
preços da eletricidade à estratosfera. E a crise expôs exatamente as
características que seriam de esperar em um caso no qual a manipulação de mercado tivesse desempenhado papel importante:
boa parte da capacidade de geração de energia da Califórnia estava ociosa, durante um período em
que os preços da energia no atacado chegaram a até 50 vezes o seu
valor habitual.
No entanto, os representantes
do governo federal, de George W.
Bush para baixo, ofereceram à
Califórnia nada mais do que sermões sobre as virtudes do livre
mercado. A Comissão Federal de
Regulamentação de Energia, que
supostamente fiscaliza esse tipo
de atividade, não descobriu nenhuma indicação de atividade ilícita. A comissão essencialmente
perguntou às empresas de energia
se elas estavam manipulando o
mercado. "Quem, nós?", responderam, e ficou por isso mesmo.
Meu estudo favorito, dentre os
trabalhos da comissão, é aquele
que conclui que as empresas de
energia tinham capacidade de
exercer "poder de mercado" e que
seria lucrativo para elas agir dessa
maneira, mas não havia indicações concretas de que o houvessem feito. Os executivos do setor
de energia devem ser mesmo sujeitos bacanas!
A importância dos memorandos acusatórios da Enron revelados alguns dias atrás é que eles demonstram exatamente como os
executivos do setor de energia são
bacanas. Ao que parece, a Enron
estava mesmo manipulando os
mercados, por meio de esquemas
que tinham apelidos engraçadinhos como "Menino Gordo" e
"Estrela da Morte". Quem é que
disse que os negócios não são
uma diversão?
Os memorandos vieram à luz a
despeito da evidente determinação da Comissão Federal de Regulamentação da Energia de evitar encontrar problemas. (Sabemos agora que o governo Bush na
prática permitiu que a Enron nomeasse os membros da comissão.) Como disse um funcionário
do governo da Califórnia, "a comissão é como um pai que se recusa a acreditar que seu filho adolescente está seguindo um mau
caminho. Os memorandos são
importantes porque equivalem a
encontrar, na mochila desse filho,
um diário onde ele admite ter
roubado a loja de bebidas".
O grande risco agora é de que isso seja tratado puramente como
mais uma história sobre a Enron.
Não é correto. A Enron era basicamente uma empresa de trading
e não uma produtora de eletricidade, e dessa forma seu impacto
sobre os preços da eletricidade era
necessariamente limitado. A verdadeira questão em jogo aqui envolve manipulação do mercado
por uma série de produtores. As
indicações circunstanciais de que
existiu manipulação são esmagadoras. E, se ainda não surgiram
memorandos incriminatórios, o
que se poderia esperar? A história
da Enron demonstra como é fácil
para uma empresa encobrir seus
rastros, especialmente quando as
autoridades regulatórias a favorecem. Se a Enron não tivesse perdido a influência política de que dispunha, ao quebrar, ninguém teria
ouvido falar do Menino Gordo ou
da Estrela da Morte.
No entanto, esse caso apresenta
um ângulo que envolve especificamente a Enron. Talvez eu tenha
cometido uma injustiça contra
Thomas White, secretário do
Exército. Antes de assumir seu
cargo, ele dirigiu a Enron Energy
Services, uma divisão que era usada primordialmente -ou eu assim pensava- como maneira de
gerar lucros falsos, inflando os
preços das ações da Enron. Mas
ao que parece a divisão tinha outro papel: criar transações falsas
de energia, inflando os lucros
reais da Enron à custa do Estado
da Califórnia. Por que, exatamente, White continua exercendo um
cargo público?
O que realmente me irrita nessa
história, no entanto, não é o comportamento das empresas de
energia. Não é nem sequer o comportamento do governo Bush,
ainda que este tenha, além de
manter-se ocioso enquanto a Califórnia era roubada em US$ 30
bilhões, explorado a miséria do
Estado para promover seu plano
de energia, absolutamente irrelevante. (Agora, é claro, o mesmo
plano de energia se tornou essencial para a guerra contra o terror.)
Não, o que mais me incomoda é
a posição assumida por tantos comentaristas políticos e de negócios: a de que a catástrofe da Califórnia tem pouco a dizer sobre os
riscos da desregulamentação e o
perigo de amar demais o livre
mercado. O problema foi culpa da
Califórnia, dizem, por ter criado
um sistema "falho" -um termo
vago que foge à necessidade de
explicar o que aconteceu durante
a crise. Na verdade, a principal falha era o fato de que o sistema não
dispunha de salvaguardas contra
manipulação do mercado.
E estou certo de que haverá um
esforço determinado para ignorar
até mesmo as revelações mais recentes. Afinal, por que deixar que
os fatos sirvam de obstáculo para
uma teoria tão bonita e tão conveniente politicamente?
Paul Krugman, economista, é professor
na Universidade Princeton (EUA). Este
artigo foi originalmente publicado pelo
jornal "The New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci
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