São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

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VINICIUS TORRES FREIRE

O paradoxo da mula-sem-cabeça


Sem cabeça, mula soltava fogo pelo nariz; sem fundos, governo quer emprestar dinheiro a juros camaradas

"ENTROU POR uma porta, saiu pela outra, mande el-rei, meu senhor, que me conte outra", aquele fecho tradicional de antigas histórias infantis poderia ser a descrição disso que o governo Lula pretende criar com o nome de "fundo soberano". Na mais recente versão de como deve funcionar a coisa, o governo passaria a economizar uma parte maior dos impostos a fim de constituir o capital desse fundo. Mas como o dinheiro do "fundo soberano" será emprestado a taxas de juros inferiores àquelas que o próprio governo paga por sua dívida, o dinheiro poupado será na prática torrado por outras vias.
Fundos soberanos são fundos de investimento estatais constituídos de excedentes de tributos (superávit fiscal) e/ou de sobras das transações internacionais de um país (superávit na conta de transações com o exterior). A primeira versão do fundo brasileiro parecia a mula-sem-cabeça que solta fogo pelas ventas, como dizia o Saci ao Pedrinho de Monteiro Lobato, de modo paradoxal (se não tinha cabeça, como soltava fogo pelas ventas?): o governo tem déficit fiscal, e o superávit externo minguou. Kennedy Alencar relatou na Folha de ontem que, como se suspeitava, o governo pretende elevar o superávit primário a fim de bancar o fundo. Parece bom, mas ainda é fantástico: a mula-sem-cabeça soltará fogo pelas orelhas.
Nos 12 meses contados até março, o setor público brasileiro poupou o equivalente a 4,46% do PIB daquilo que arrecadou em tributos (isto é, o superávit primário). Como a conta dos juros da dívida foi de 6,1% do PIB, o setor público ainda ficou no vermelho em 1,64 ponto do PIB (teve déficit nominal). Até ontem, o governo indicava que lá pelo fim do ano o superávit primário cairia para 3,8% do PIB. Agora, pensa em fazer 5% do PIB. Esse 1,2 ponto do PIB extra equivale a R$ 31,6 bilhões, uns US$ 19 bilhões, dinheiro que iria ao fundo soberano. O governo pouparia mais, mas não investiria mais em infra-estrutura e continuaria no vermelho. Lembrete: o governo investe por ano menos de 1% do PIB.
A taxa média de juros da dívida federal está em torno de 13% ao ano (e subindo para 14%). Uma empresa brasileira grande e de boa reputação toma dinheiro emprestado no exterior a taxas de 6% a 7% ao ano, para financiamentos de uma década, e a custo bem menor para prazos inferiores (a variedade de taxas, prazos, instrumentos etc. é grande, mas, grosso modo, o exemplo vale). Bem, o dinheiro da receita de impostos que irá para o fundo soberano seria utilizado na compra de dólares. Os dólares seriam emprestados a uma filial estrangeira do BNDES, que repassaria os empréstimos a empresas brasileiras no exterior. Logo, a uma taxa que não pode ser superior àqueles 6%, digamos, que a empresa já encontra no mercado. O governo deixaria de abater uma dívida que custa 13% ao ano a fim de emprestar dinheiro a 6%. Hum.
Quando o governo compra dólares, derrama reais no mercado. Para conter a bolha monetária, o governo vende títulos da dívida pública e recolhe os reais. Logo, para adicionar injúria ao insulto do fundo soberano, haverá ainda mais dívida pública, ora em 41% do PIB.

vinit@uol.com.br


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