São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

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RUBENS RICUPERO

Pingando pontos nos is


Cabe lamentar que o grau de investimento tenha coincidido com a queda da balança e a projeção de déficit externo

TENDO SIDO um dos operários da hercúlea tarefa de devolver o mínimo de estabilidade a economia viciada por 30 anos de inflação crônica com correção monetária, não posso deixar de alegrar-me pela conquista resultante dessa obra: o grau de investimento.
Todavia o exagero irracional com que a notícia vem sendo recebida entre nós reclama urgente esforço de recuperação do senso de proporção e medida, alterado pelos vapores etílicos da embriaguez coletiva.
O primeiro a dizer, nesse sentido, é que se trata do início do começo. Ganhamos o grau de uma das três agências apenas. Isso mesmo no mais baixo de nove níveis, longe dos três AAA do topo, cuja concessão aos culpados do desastre das hipotecas gera nos EUA sérias acusações à cumplicidade das agências nas perdas bilionárias.
Norman Gall, diretor do Instituto Braudel, teve a paciência de mimosear os amigos com lista de 33 países emergentes ou em transição agraciados pelo grau. A inclusão de economias "pujantes" como Bulgária, Chipre, Estônia, Cazaquistão, Romênia, todas, mais que o Brasil, triplicemente coroadas, faz duvidar do valor da coroa e da sensatez dos juízes.
Cabe lamentar que o prêmio tenha coincidido com a deterioração alarmante da balança comercial (mais de 60%) e da projeção de déficit em conta corrente. "Melhor", dirão os espartanos do Banco Central, "combateremos à sombra!" Supõe-se, com efeito, que o generoso guarda-chuva da agência nos proteja da intempérie, recompensando com opíparos proveitos os bravos investidores que se aventurem a cobrir o buraco negro do déficit corrente.
Se assim for, salvaremo-nos da morte súbita de crise como a de 1998. Não, contudo, do inexorável declínio trazido pela apreciação da moeda, que já está em mais de 35% desde 2006. Cada vez exportaremos mais grão do que óleo, mais commodities do que produtos industrializados.
Em outros termos, o perigo da sobrevalorização da moeda não é apenas o da crise cambial provocada pelo aumento do déficit. É a dificuldade de agregar valor às exportações. A não ser por meio da elevação da produtividade geral da economia, o que, convenhamos, parece difícil com os juros, os impostos e a infra-estrutura que temos.
Mal se pagou a conta da festa pelo fim da dívida externa, volta-se ao mercado internacional para levantar empréstimos e reiniciar o ciclo.
De novo se fala que é bom para país carente de capital ter déficit em conta corrente. Será verdade num mundo ideal. No real, os países com déficits altos -Letônia (23% do PIB), Bulgária (21%), Grécia ou Romênia (ambos com 14%)- têm proteção melhor que as agências: a União Européia, da qual são membros.
Na América Latina, onde não temos essa vantagem, o Chile ostenta saldo positivo de 3,7%, e o Peru, de 1,6%. O único e modesto déficit de país com grau de investimento é o do México: 0,8%. Será inspiração para nós uma economia que, dispondo há anos do cobiçado grau e de acordo de livre comércio com os Estados Unidos, consegue crescer menos que a nossa, tendo virado sinônimo de maquiladora?
Se déficit em conta corrente fosse tão bom para o desenvolvimento, o exemplo devia vir dos asiáticos, campeões mundiais de crescimento.
Ora, a China tem o polpudo saldo de 11%, a Tailândia, de 6%, a Malásia, de 14%. Como se vê, nisso os dragões nada aprenderam ainda com o Brasil.


RUBENS RICUPERO , 71, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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