São Paulo, segunda, 11 de maio de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Moeda semi-única

JOÃO SAYAD
O Banco Central Europeu começa a funcionar em janeiro de 1999.
A rigor, não temos nada a ver com isso, mas a nova moeda ajuda a pensar sobre problemas brasileiros.
A idéia de moeda única é velho sonho de todos os defensores da concorrência e da liberdade de comércio. A moeda única facilita o comércio de mercadorias, a movimentação de capitais e de pessoas entre diferentes países.
No século passado e início deste século, todos os países adotavam o padrão ouro, que tentava imitar uma moeda única, ainda que existissem diferentes moedas no mundo.
No regime de padrão ouro, as taxas de câmbio eram fixas. Quer dizer, um dólar seria equivalente a x libras e sempre a x libras, a y mil réis e assim por diante. Eram moedas diferentes com preço fixo entre elas como se fossem uma moeda só.
Além disso, a emissão de moeda era condicionada à quantidade de ouro existente em cada país. Como a quantidade de ouro era pouco variável e independente de qualquer governo, a quantidade de moeda em circulação seria determinada, supranacionalmente, pela quantidade de ouro, que faria o papel do Banco Central Europeu.
Assim, o padrão ouro acabaria criando uma espécie de moeda única virtual: muitas moedas que funcionavam como se fossem uma só. Taxa de câmbio fixa e quantidade de moeda independente da política de qualquer governo.
De fato, nunca funcionou assim, mas a idéia é útil para entender a moeda única.
No Brasil, o Nordeste e o Sul do país têm uma moeda única: quer dizer, a taxa de câmbio entre reais do Nordeste e reais do Sul é fixa e nem o Nordeste nem o Sul do país podem emitir moeda. Apenas o Banco Central do Brasil.
Os mercados do Nordeste e do Sul são integrados, a mão-de-obra e o capital emigram do Nordeste para ao Sul e vice-versa.
E se o Nordeste tivesse outra moeda? Seria melhor ou pior?
Primeiro, imaginemos que a taxa de câmbio Nordeste-Sul fosse fixa.
Com a seca, o Nordeste precisaria importar mais e exportar menos alimentos. O Banco Central do Nordeste deveria aumentar as taxas de juros para atrair moedas do Sul e financiar o déficit comercial da região. Se a seca fosse muito severa, precisaria provocar alguma recessão cortando gastos do tesouro nordestino e aumentando impostos. O flagelo de Deus seria acompanhado pelo flagelo dos homens.
Se a taxa de câmbio Nordeste-Sul fosse variável, haveria desvalorização cambial no Nordeste, aumentando o custo de importação de alimentos e a rentabilidade das exportações nordestinas. Os flagelos econômicos seriam menores.
Até aqui, a moeda nordestina só aumentou o sofrimento da região.
A seca acabou, o Nordeste e o Sul resolveram adotar uma moeda única.
O Nordeste tem infra-estrutura -estradas, educação, habitações, saneamento- de menor qualidade do que o Sul, e os salários são comuns, pois os trabalhadores podem emigrar e imigrar.
Com a moeda única, nordestinos e sulistas passam a ganhar R$ 100 por mês, a moeda nacional.
A indústria e a agricultura nordestina perdem competitividade. Pois pagam o mesmo salário que o Sul para a mão-de-obra e preços maiores ou qualidades inferiores para outros serviços que não podem ser transportados entre as regiões (a infra-estrutura). Do contrário, haverá desemprego no Nordeste ou emigração para o Sul.
Se a taxa de câmbio Nordeste-Sul fosse variável, bastaria desvalorizar o câmbio do Nordeste. Os trabalhadores nordestinos ganhariam R$ 100/nordeste que seriam equivalentes, por exemplo, a R$ 80/sul e a economia nordestina recuperaria a competitividade.
O salário do Nordeste poderia ser reduzido também por meio de uma reforma da Previdência ou flexibilização das leis trabalhistas.
A Argentina tem uma moeda única com os Estados Unidos. O peso argentino vale um dólar americano e a constituição argentina impede que se emitam pesos se não houver quantidade igual de dólares no país.
Mas argentinos não podem emigrar livremente para os Estados Unidos, nem as leis americanas se aplicam na Argentina. Como a infra-estrutura argentina é de menor qualidade do que a americana, os argentinos perderam competitividade para os Estados Unidos, passaram a ter déficits comerciais. Que só serão corrigidos por redução do salário nominal dos argentinos.
Se os salários nominais não caírem, haverá desemprego e saída de capitais financeiros, que diferentemente da mão-de-obra sempre podem migrar.
O Brasil tem uma moeda semi-única com os Estados Unidos. A taxa de câmbio é menos fixa do que a argentina e a quantidade de reais em circulação é menos dependente da quantidade de dólares.
O Brasil também passou a enfrentar problemas de balanço comercial que precisam ser compensados por taxas de juros elevadas. A moeda semi-única do Brasil conseguiu reduzir as taxas de inflação para níveis muito baixos.
Como não podemos emigrar, os problemas de balanço comercial só serão reduzidos se os salários nominais caírem ou se o desemprego aumentar. Do contrário, precisam ser financiados por taxas de juros muito altas.


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.



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