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ARTIGO
Apenas uma súbita conversão ao surrealismo na conduta da política monetária poderia explicar as ações incomuns do banco central norte-americano
Atitudes de Greenspan parecem surrealistas
GERARD BAKER
DO "FINANCIAL TIMES"
No último ano ou dois, só
vimos mudanças no comando dos grandes bancos centrais
mundiais. Mervyn King, o astro
da política monetária britânica
nos últimos cinco anos, foi promovido ao seu lugar de direito como presidente do Banco da Inglaterra. O igualmente talentoso
Jean-Claude Trichet escapou às
garras dos promotores franceses e
foi nomeado presidente do BCE
(Banco Central Europeu) pelos
próximos oito anos. E, para surpresa de todos, Salvador Dalí assumiu o leme do Federal Reserve
(Fed, o banco central dos EUA).
Ou pelo menos é isso que poderíamos inferir do comportamento
do Fed nas últimas semanas. Apenas uma súbita conversão ao surrealismo na conduta da política
monetária poderia explicar as
ações incomuns do banco central
norte-americano. O surrealismo
foi descrito pelos artistas que o
fundaram como reação ao racionalismo do final do século 19 e começo do século 20. A julgar por
suas decisões mais recentes, o Fed
decidiu que o mundo que habita
está com overdose de racionalismo e precisa do desafio de uma
atividade mais onírica -o equivalente aos relógios derretidos de
Dalí para política monetária.
Considere a estranha abordagem sobre taxas de juros adotada
nos dois últimos meses. No começo de maio, em declarações oficiais e discursos, o Fed interferiu
no debate cada vez mais amplo
sobre a deflação, admitindo que
estava encarando o risco com seriedade. Estimulados pela energia
intelectual de Ben Bernanke, o
acadêmico apontado em 2002 para uma das presidências regionais
do Fed, Greenspan e seus colegas
agiram rapidamente para convencer os mercados de que entendiam o que precisava ser feito para minimizar a chance de surto de
queda generalizada dos preços.
Já que o maior medo era que o
Fed atingisse o zero nas taxas de
juros líquidos, o plano era persuadir os mercados de que a instituição dispunha de outros meios para injetar liquidez na economia e
estimular as atividades em especial, pela manipulação das taxas
de juros de longo prazo, por meio
de declarações políticas e, se necessário, pela aquisição de títulos
públicos e privados de dívida.
Os investidores reagiram a isso
como seria de esperar: adquiriram títulos do Tesouro e forçaram baixa generalizada das taxas
de juros de longo prazo. Na primeira semana de
maio, o rendimento do título de
Tesouro com prazo de dez anos estava uma fração
abaixo dos 4%.
Seis semanas mais
tarde, caíra a menos de 3,1%. A
despeito de boatos sobre uma bolha no mercado de
bônus, a mudança
parecia justificada, sancionada até
mesmo pelo Fed
como parte de sua
nova e audaz estratégia para enfrentar riscos deflacionários.
Quando os mercados começaram a incorporar
aos seus preços a probabilidade
de uma redução de meio ponto
percentual nas taxas de juros de
curto prazo na reunião de política
monetária do Fed de junho,
Greenspan nada fez para rebater a
impressão de que as torneiras
continuariam abertas. Mas então
tudo mudou. Em 25 de junho, o
Fed reduziu os juros de curto prazo em apenas 0,25
ponto percentual.
A medida em si
era menos significativa do que o sinal que ela parecia enviar: acreditamos que os rendimentos dos títulos se tornaram
baixos demais;
não existe risco
real de deflação e,
então, por que todo esse pânico?
Os mercados de
bônus cumpriram lealmente o
seu dever e voltaram a empurrar
os rendimentos
dos títulos públicos a uma alta.
Isso causou problemas a algumas instituições financeiras, algo
que talvez não incomode o Fed
(se bem que podemos perguntar
se a decisão poderia ter sido diferente caso o banco central não tivesse demorado tanto para
preencher a vaga de presidente do
Fed de Nova York, o dirigente que
mantém o olho na pulsação dos
mercados financeiros dos EUA).
Mas o estímulo monetário fazia
parte da maior parte dos cálculos
de que a economia se recuperaria
no segundo semestre do ano. Essa
suposição pode ser questionada,
agora. O mais sério, porém, é que
a reputação do Fed por falar com
franqueza foi prejudicada pela reviravolta que a instituição engendrou nas condições financeiras.
Há um surrealismo ainda mais
profundo que também parece envolver toda a abordagem do Fed
com relação à deflação. Os principais dirigentes do banco central
insistem não só em que a deflação
é uma possibilidade de baixo risco nos EUA, mas que, em um
mundo de "fiat money" [papel-moeda emitido sem lastro em
moedas ou metais], ela deveria de
fato ser uma impossibilidade teórica. "Fiat money" não é o dinheiro de que você precisa para dar
entrada em um pequeno carro
italiano, mas o regime que permite que um banco central crie condições monetárias próprias independentemente de determinantes
externos, como o padrão ouro.
Em resumo, se a economia parecer precisar de um pouquinho
da inflação, basta o banco central
abrir as torneiras e gerá-la. Mas,
diante das realidades desconfortáveis de Japão, Hong Kong e de
um número crescente de países
da Europa Oriental, o Fed se vê
forçado a agir como se levasse
mais a sério o risco de deflação.
Isso é mais ou menos como um
pai reconfortando uma criança
medrosa na hora em que ela vai
dormir dizendo que não existem
monstros embaixo da cama, mas
ao mesmo tempo deixando um
taco de beisebol sob o travesseiro
caso algum monstro apareça. A
criança ouve as palavras, vê as
medidas e se sente desorientada.
Na semana que vem, Greenspan
poderá explicar tudo ao Congresso em sua fala regular sobre a política monetária. Mas a resposta já
parece clara. Os surrealistas almejavam a liberdade artística que
surgia de sua jornada a um plano
de pensamento ao mesmo tempo
racional e irracional. Parece que o
Fed quer fazer-lhes companhia.
Tradução de Paulo Migliacci
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