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São Paulo, sexta-feira, 11 de julho de 2003

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ARTIGO

Apenas uma súbita conversão ao surrealismo na conduta da política monetária poderia explicar as ações incomuns do banco central norte-americano

Atitudes de Greenspan parecem surrealistas

GERARD BAKER
DO "FINANCIAL TIMES"

No último ano ou dois, só vimos mudanças no comando dos grandes bancos centrais mundiais. Mervyn King, o astro da política monetária britânica nos últimos cinco anos, foi promovido ao seu lugar de direito como presidente do Banco da Inglaterra. O igualmente talentoso Jean-Claude Trichet escapou às garras dos promotores franceses e foi nomeado presidente do BCE (Banco Central Europeu) pelos próximos oito anos. E, para surpresa de todos, Salvador Dalí assumiu o leme do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA).
Ou pelo menos é isso que poderíamos inferir do comportamento do Fed nas últimas semanas. Apenas uma súbita conversão ao surrealismo na conduta da política monetária poderia explicar as ações incomuns do banco central norte-americano. O surrealismo foi descrito pelos artistas que o fundaram como reação ao racionalismo do final do século 19 e começo do século 20. A julgar por suas decisões mais recentes, o Fed decidiu que o mundo que habita está com overdose de racionalismo e precisa do desafio de uma atividade mais onírica -o equivalente aos relógios derretidos de Dalí para política monetária.
Considere a estranha abordagem sobre taxas de juros adotada nos dois últimos meses. No começo de maio, em declarações oficiais e discursos, o Fed interferiu no debate cada vez mais amplo sobre a deflação, admitindo que estava encarando o risco com seriedade. Estimulados pela energia intelectual de Ben Bernanke, o acadêmico apontado em 2002 para uma das presidências regionais do Fed, Greenspan e seus colegas agiram rapidamente para convencer os mercados de que entendiam o que precisava ser feito para minimizar a chance de surto de queda generalizada dos preços.
Já que o maior medo era que o Fed atingisse o zero nas taxas de juros líquidos, o plano era persuadir os mercados de que a instituição dispunha de outros meios para injetar liquidez na economia e estimular as atividades em especial, pela manipulação das taxas de juros de longo prazo, por meio de declarações políticas e, se necessário, pela aquisição de títulos públicos e privados de dívida.
Os investidores reagiram a isso como seria de esperar: adquiriram títulos do Tesouro e forçaram baixa generalizada das taxas de juros de longo prazo. Na primeira semana de maio, o rendimento do título de Tesouro com prazo de dez anos estava uma fração abaixo dos 4%. Seis semanas mais tarde, caíra a menos de 3,1%. A despeito de boatos sobre uma bolha no mercado de bônus, a mudança parecia justificada, sancionada até mesmo pelo Fed como parte de sua nova e audaz estratégia para enfrentar riscos deflacionários.
Quando os mercados começaram a incorporar aos seus preços a probabilidade de uma redução de meio ponto percentual nas taxas de juros de curto prazo na reunião de política monetária do Fed de junho, Greenspan nada fez para rebater a impressão de que as torneiras continuariam abertas. Mas então tudo mudou. Em 25 de junho, o Fed reduziu os juros de curto prazo em apenas 0,25 ponto percentual. A medida em si era menos significativa do que o sinal que ela parecia enviar: acreditamos que os rendimentos dos títulos se tornaram baixos demais; não existe risco real de deflação e, então, por que todo esse pânico? Os mercados de bônus cumpriram lealmente o seu dever e voltaram a empurrar os rendimentos dos títulos públicos a uma alta.
Isso causou problemas a algumas instituições financeiras, algo que talvez não incomode o Fed (se bem que podemos perguntar se a decisão poderia ter sido diferente caso o banco central não tivesse demorado tanto para preencher a vaga de presidente do Fed de Nova York, o dirigente que mantém o olho na pulsação dos mercados financeiros dos EUA). Mas o estímulo monetário fazia parte da maior parte dos cálculos de que a economia se recuperaria no segundo semestre do ano. Essa suposição pode ser questionada, agora. O mais sério, porém, é que a reputação do Fed por falar com franqueza foi prejudicada pela reviravolta que a instituição engendrou nas condições financeiras.
Há um surrealismo ainda mais profundo que também parece envolver toda a abordagem do Fed com relação à deflação. Os principais dirigentes do banco central insistem não só em que a deflação é uma possibilidade de baixo risco nos EUA, mas que, em um mundo de "fiat money" [papel-moeda emitido sem lastro em moedas ou metais], ela deveria de fato ser uma impossibilidade teórica. "Fiat money" não é o dinheiro de que você precisa para dar entrada em um pequeno carro italiano, mas o regime que permite que um banco central crie condições monetárias próprias independentemente de determinantes externos, como o padrão ouro.
Em resumo, se a economia parecer precisar de um pouquinho da inflação, basta o banco central abrir as torneiras e gerá-la. Mas, diante das realidades desconfortáveis de Japão, Hong Kong e de um número crescente de países da Europa Oriental, o Fed se vê forçado a agir como se levasse mais a sério o risco de deflação.
Isso é mais ou menos como um pai reconfortando uma criança medrosa na hora em que ela vai dormir dizendo que não existem monstros embaixo da cama, mas ao mesmo tempo deixando um taco de beisebol sob o travesseiro caso algum monstro apareça. A criança ouve as palavras, vê as medidas e se sente desorientada.
Na semana que vem, Greenspan poderá explicar tudo ao Congresso em sua fala regular sobre a política monetária. Mas a resposta já parece clara. Os surrealistas almejavam a liberdade artística que surgia de sua jornada a um plano de pensamento ao mesmo tempo racional e irracional. Parece que o Fed quer fazer-lhes companhia.


Tradução de Paulo Migliacci


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