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ANÁLISE
Ao votar contra o "fast track", democrata nega sua história
AMITY SHLAES
DO "FINANCIAL TIMES"
A coisa mais surpreendente
na batalha que vem sendo
travada no Congresso quanto ao
projeto de lei que promoveria
maior liberalização comercial não
é que ela esteja acontecendo, mas
que os democratas estejam assumindo o papel protecionista, e os
republicanos, o de defensores do
livre mercado.
Na votação da Câmara da Autoridade de Promoção do Comércio
(TPA, na sigla em inglês), o chamado "fast track", só 21 dos democratas não se opuseram à medida. A medida deve ser aprovada
no Senado, mas com resistência
dos democratas, se comparada
àquela que a liberalização do comércio enfrentou em outras frentes. Isso constitui uma excêntrica
reviravolta para o Partido Democrata. Ao longo de boas parte da
história dos EUA, os democratas
defenderam o livre comércio, e os
republicanos eram os ferrenhos
defensores das tarifas.
Embora a inversão de papéis
possa dar lucros no curto prazo,
talvez no final ela não se prove tão
sábia. Pois, como demonstrou a
recente experiência republicana,
tentativas de limitar a liberalização comercial podem causar consideráveis problemas.
Para compreender o tamanho
da herança que os democratas estão abandonando, é preciso recordar a história. Já em 1888, o
presidente Grover Cleveland, democrata, fez da redução de tarifas
a peça central de sua campanha.
Ele foi derrotado por Benjamin
Harrison depois que o republicano o acusou do sério pecado de
"tentar impor a este país a política
britânica do livre comércio".
Quarenta e cinco anos mais tarde,
Franklin D. Roosevelt derrotou
Herbert Hoover.
Nos anos 60, John F. Kennedy
via a expansão do comércio internacional como elemento crucial
para a vitória na Guerra Fria. Falando sobre a União Européia, declarou que, "para participar daquele mercado, é preciso que cheguemos a um acordo. Precisamos
dar algo aos europeus, precisamos nos dispor a abrir a eles os
nossos mercados". Um dos adversários de Kennedy quanto às
suas idéias era Prescott Bush, o
avô do atual presidente.
O compromisso dos democratas com o comércio internacional
era tão forte que terminou por superar as preocupações partidárias. Nos anos 70 e 80, o Congresso, dominado pelos democratas,
optou repetidamente por amarrar
suas próprias mãos e apoiar presidentes republicanos, dando-lhes
a autoridade para negociar acordos comerciais pela chamada "via
expressa" (fast track), o antecedente do projeto de lei em discussão agora no Legislativo.
O presidente Bill Clinton, da
mesma maneira, desconsiderou
as objeções de seus partidários no
movimento trabalhista quando
pressionou pela aprovação do
Acordo de Livre Comércio da
América do Norte (Nafta). Os resultados foram positivos para
quase todos, incluídos muitos democratas e trabalhadores sindicalizados. Como Robert Zoellick, o
atual representante do governo
norte-americano para assuntos
de comércio internacional,
enrouqueceu de tanto repetir, o
trabalho de Clinton na área de comércio externo resultou em ganhos de renda da ordem de US$
1,3 mil a US$ 2,6 mil para o domicílio médio norte-americano.
Assim, o que levou os democratas a abandonar essa tradição?
O sindicalismo organizado é a
primeira resposta. A AFL-CIO,
principal central sindical norte-americana, está avançando rapidamente rumo à esquerda em
suas posições sobre o comércio, e
arrasta com ela o Partido Democrata. Os sindicatos se tornaram
uma fonte importante demais para os fundos de campanha dos democratas (a maior das fontes, se
incluirmos no cômputo recursos
como as campanhas de doação
via telefone que os sindicatos ajudam a organizar). John Sweeney,
o presidente da AFL-CIO, trabalhou pesado pelos democratas na
eleição de 2000. Os votos contrários à liberdade presidencial para
redigir tratados são a recompensa
ao esforço dele.
Os elos entre sindicatos e o Partido Democrata são antigos. Mas
hoje, ressalta o estudioso Leo
Troy, da Universidade Rutgers, os
democratas se transformaram em
algo semelhante ao Partido Trabalhista britânico dos anos 70. De
maneira reveladora, os projetos
de lei de comércio apresentados
pelos democratas como alternativa à medida republicana incluem
uma tentativa de reforçar o poder
mundial dos sindicatos, exigindo
que os EUA apóiem a concessão
do direito de negociação coletiva
a trabalhadores de outros países.
A segunda força por trás da reversão do papel democrata é o
que poderíamos chamar de "atitude Nike", o crescente desejo de
colocar objetivos sociais em posição de destaque com relação à
"simples economia". Os democratas mais jovens, especialmente
os que representam distritos eleitorais prósperos, são suscetíveis à
atitude. No caso do debate sobre a
liberdade presidencial para redigir tratados de comércio, eles alegam que novas liberdades do gênero não deveriam ser concedidas
sem que os trabalhadores de todo
o mundo se beneficiassem com
maiores salários.
A atitude tem certo apelo sentimental, mas ignora propositadamente os benefícios genuínos sociais, em alguns casos, que derivam do crescimento gerado pelo
comércio internacional, no exterior e em casa. A senadora Maria
Cantwell, do Estado de Washington, por exemplo, se opõe à medida que aumentaria os poderes de
Bush quanto ao comércio internacional apesar de ter feito fortuna na internet, se beneficiando do
comércio internacional, e ainda
que a Microsoft, empresa sediada
em seu Estado, apóie a medida.
A terceira coisa que motiva os
democratas com relação ao comércio internacional é simplesmente hostilidade partidária.
Com seu voto quanto aos poderes
presidenciais para o comércio externos, os democratas da Câmara
desejavam ardentemente causar a
primeira grande derrota legislativa de Bush. Além disso, eles calculam que, se, em um momento de
recessão, puderem retratar Bush
como disposto a sacrificar o trabalhador em seu atual estado vulnerável, isso talvez lhes renda
grandes vitórias eleitorais.
Cálculos como esse já se provaram arriscados. Nos anos 90, muitos republicanos se opuseram ao
Nafta e ao "fast track" não tanto
por acreditarem em protecionismo, mas porque acreditavam que
sua oposição tornaria Clinton impotente. Quando a economia se
expandiu depois da aprovação do
Nafta, foi a imagem dos republicanos que sofreu seriamente, especialmente sua preciosa reputação como adivinhos econômicos
seguros.
Ninguém é bonzinho nessa história. Políticos são terrivelmente
hipócritas quanto ao comércio internacional, como demonstrou o
governo Bush uma vez mais ao
defender as grandes siderúrgicas
com vigor desnecessário. Ainda
assim, adotar o protecionismo em
um tempo de economias flexíveis
e diversificadas pode representar
abandonar o centro do espectro
político. Quando chegar a recuperação econômica, os democratas
que se opuseram ao comércio internacional terão dificuldades para provar que não fizeram um
mau negócio.
Tradução de Paulo Migliacci
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