São Paulo, terça-feira, 11 de dezembro de 2001

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ANÁLISE

Ao votar contra o "fast track", democrata nega sua história

AMITY SHLAES
DO "FINANCIAL TIMES"

A coisa mais surpreendente na batalha que vem sendo travada no Congresso quanto ao projeto de lei que promoveria maior liberalização comercial não é que ela esteja acontecendo, mas que os democratas estejam assumindo o papel protecionista, e os republicanos, o de defensores do livre mercado.
Na votação da Câmara da Autoridade de Promoção do Comércio (TPA, na sigla em inglês), o chamado "fast track", só 21 dos democratas não se opuseram à medida. A medida deve ser aprovada no Senado, mas com resistência dos democratas, se comparada àquela que a liberalização do comércio enfrentou em outras frentes. Isso constitui uma excêntrica reviravolta para o Partido Democrata. Ao longo de boas parte da história dos EUA, os democratas defenderam o livre comércio, e os republicanos eram os ferrenhos defensores das tarifas.
Embora a inversão de papéis possa dar lucros no curto prazo, talvez no final ela não se prove tão sábia. Pois, como demonstrou a recente experiência republicana, tentativas de limitar a liberalização comercial podem causar consideráveis problemas.
Para compreender o tamanho da herança que os democratas estão abandonando, é preciso recordar a história. Já em 1888, o presidente Grover Cleveland, democrata, fez da redução de tarifas a peça central de sua campanha. Ele foi derrotado por Benjamin Harrison depois que o republicano o acusou do sério pecado de "tentar impor a este país a política britânica do livre comércio". Quarenta e cinco anos mais tarde, Franklin D. Roosevelt derrotou Herbert Hoover.
Nos anos 60, John F. Kennedy via a expansão do comércio internacional como elemento crucial para a vitória na Guerra Fria. Falando sobre a União Européia, declarou que, "para participar daquele mercado, é preciso que cheguemos a um acordo. Precisamos dar algo aos europeus, precisamos nos dispor a abrir a eles os nossos mercados". Um dos adversários de Kennedy quanto às suas idéias era Prescott Bush, o avô do atual presidente.
O compromisso dos democratas com o comércio internacional era tão forte que terminou por superar as preocupações partidárias. Nos anos 70 e 80, o Congresso, dominado pelos democratas, optou repetidamente por amarrar suas próprias mãos e apoiar presidentes republicanos, dando-lhes a autoridade para negociar acordos comerciais pela chamada "via expressa" (fast track), o antecedente do projeto de lei em discussão agora no Legislativo.
O presidente Bill Clinton, da mesma maneira, desconsiderou as objeções de seus partidários no movimento trabalhista quando pressionou pela aprovação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Os resultados foram positivos para quase todos, incluídos muitos democratas e trabalhadores sindicalizados. Como Robert Zoellick, o atual representante do governo norte-americano para assuntos de comércio internacional, enrouqueceu de tanto repetir, o trabalho de Clinton na área de comércio externo resultou em ganhos de renda da ordem de US$ 1,3 mil a US$ 2,6 mil para o domicílio médio norte-americano.
Assim, o que levou os democratas a abandonar essa tradição?
O sindicalismo organizado é a primeira resposta. A AFL-CIO, principal central sindical norte-americana, está avançando rapidamente rumo à esquerda em suas posições sobre o comércio, e arrasta com ela o Partido Democrata. Os sindicatos se tornaram uma fonte importante demais para os fundos de campanha dos democratas (a maior das fontes, se incluirmos no cômputo recursos como as campanhas de doação via telefone que os sindicatos ajudam a organizar). John Sweeney, o presidente da AFL-CIO, trabalhou pesado pelos democratas na eleição de 2000. Os votos contrários à liberdade presidencial para redigir tratados são a recompensa ao esforço dele.
Os elos entre sindicatos e o Partido Democrata são antigos. Mas hoje, ressalta o estudioso Leo Troy, da Universidade Rutgers, os democratas se transformaram em algo semelhante ao Partido Trabalhista britânico dos anos 70. De maneira reveladora, os projetos de lei de comércio apresentados pelos democratas como alternativa à medida republicana incluem uma tentativa de reforçar o poder mundial dos sindicatos, exigindo que os EUA apóiem a concessão do direito de negociação coletiva a trabalhadores de outros países.
A segunda força por trás da reversão do papel democrata é o que poderíamos chamar de "atitude Nike", o crescente desejo de colocar objetivos sociais em posição de destaque com relação à "simples economia". Os democratas mais jovens, especialmente os que representam distritos eleitorais prósperos, são suscetíveis à atitude. No caso do debate sobre a liberdade presidencial para redigir tratados de comércio, eles alegam que novas liberdades do gênero não deveriam ser concedidas sem que os trabalhadores de todo o mundo se beneficiassem com maiores salários.
A atitude tem certo apelo sentimental, mas ignora propositadamente os benefícios genuínos sociais, em alguns casos, que derivam do crescimento gerado pelo comércio internacional, no exterior e em casa. A senadora Maria Cantwell, do Estado de Washington, por exemplo, se opõe à medida que aumentaria os poderes de Bush quanto ao comércio internacional apesar de ter feito fortuna na internet, se beneficiando do comércio internacional, e ainda que a Microsoft, empresa sediada em seu Estado, apóie a medida.
A terceira coisa que motiva os democratas com relação ao comércio internacional é simplesmente hostilidade partidária. Com seu voto quanto aos poderes presidenciais para o comércio externos, os democratas da Câmara desejavam ardentemente causar a primeira grande derrota legislativa de Bush. Além disso, eles calculam que, se, em um momento de recessão, puderem retratar Bush como disposto a sacrificar o trabalhador em seu atual estado vulnerável, isso talvez lhes renda grandes vitórias eleitorais.
Cálculos como esse já se provaram arriscados. Nos anos 90, muitos republicanos se opuseram ao Nafta e ao "fast track" não tanto por acreditarem em protecionismo, mas porque acreditavam que sua oposição tornaria Clinton impotente. Quando a economia se expandiu depois da aprovação do Nafta, foi a imagem dos republicanos que sofreu seriamente, especialmente sua preciosa reputação como adivinhos econômicos seguros.
Ninguém é bonzinho nessa história. Políticos são terrivelmente hipócritas quanto ao comércio internacional, como demonstrou o governo Bush uma vez mais ao defender as grandes siderúrgicas com vigor desnecessário. Ainda assim, adotar o protecionismo em um tempo de economias flexíveis e diversificadas pode representar abandonar o centro do espectro político. Quando chegar a recuperação econômica, os democratas que se opuseram ao comércio internacional terão dificuldades para provar que não fizeram um mau negócio.


Tradução de Paulo Migliacci


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