São Paulo, quarta-feira, 11 de dezembro de 2002

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ARTIGO

Se os EUA permitirem, a América do Sul poderá se tornar a próxima África

NICHOLAS D. KRISTOF
DO "THE NEW YORK TIMES"

Enquanto todos nos concentramos no distante Iraque, nossa vizinha imediata, a América do Sul, está silenciosamente se despedaçando.
Maria Amelia Miranda chorava ontem na favela de Iapi, em Monte Chingolos, sul de Buenos Aires. Três de seus sete filhos, meninas de oito, sete e três anos, tinham vermes intestinais de até 30 cm, e ela precisa removê-los periodicamente. Mas o vermífugo custa US$ 1,40 a dose, e ela não tem como comprá-lo e ao mesmo tempo manter seus filhos alimentados.
"Uma vez comprei um pouco de remédio e dei algumas gotas a cada um de meus filhos", conta. "Mas não era uma dose integral, e assim não fez efeito. Agora minhas crianças sentem coceira, e minha filha de oito anos está perdendo peso. Se elas têm parasitas, pouco importa o que comam."
Até hoje, a única parte do mundo que sofreu uma queda sustentada de renda foi a África. Mas a América do Sul e a América Central correm risco de se tornarem uma segunda África, no sentido da negligência que lhes é reservada pelas instituições ocidentais e do desespero de seus cidadãos, da queda abissal dos padrões de vida, dos golpes de Estado e guerras civis. Se permitirmos isso, nós ianques pagaremos o preço em termos econômicos, de drogas e imigração, por muitos anos.
A política de Washington com relação à América do Sul está em completa desordem, e houve pouca urgência quanto a um novo acordo entre o FMI e a Argentina. O Departamento do Tesouro, agora sob o comando de John Snow, precisa despertar para as responsabilidades internacionais.
O historiador econômico Angus Madison calcula que, em 1900, a renda per capita da Argentina era de cerca de US$ 2,8 mil, um pouco abaixo da americana.
A Argentina foi um dos maiores fracassos dos últimos 100 anos, porque hoje sua renda per capita está em cerca de US$ 2,5 mil. A trajetória fica evidente em famílias como a de Eduardo Alberto William, que deve o sobrenome a um bisavô que imigrou da Inglaterra para dar melhores perspectivas aos descendentes. Foi uma má aposta. William é um dos 125 mil separadores de lixo do país, que recolhem produtos recicláveis e ganham cerca de US$ 2 por dia.
Com uma economia que se contrairá em mais de 10% neste ano, a Argentina decretou moratória.
"Como podemos pagar?", perguntou Miram Ganduglia, que cuidava de sua plantação de legumes. "Estamos passando fome."
Fome? Ela se veste bem e tem as unhas dos pés e das mãos pintadas de vermelho. Mas os argentinos estão traumatizados porque pensavam, até há pouco, que viviam no mundo moderno e hoje se vêem forçados a sobreviver às duras penas no Terceiro Mundo.
Não é só a Argentina, pois toda a América do Sul está em crise. Uruguai, Paraguai e Bolívia estão em situação tão ruim quanto a dos argentinos, ou pior. O Brasil pode seguir o vizinho e declarar moratória da dívida externa, o que abalaria a economia mundial.
A Colômbia está se desintegrando em guerra civil, e a Venezuela passa por uma paralisia devido a uma crise política que poderia redundar em guerra. As políticas de livre mercado definidas sob o "Consenso de Washington" nos anos 90 estão desacreditadas, em parte porque não combatemos a corrupção com a agressividade devida. E em países tão diversos como Brasil, Venezuela, Peru e Equador as eleições recentes foram vencidas por esquerdistas ou populistas, o que tende a causar nervosismo aos americanos.
O Iraque, evidentemente, é de primeira importância, porque é provável que em breve estejamos em guerra. Mas no mundo de hoje, como no xadrez, não se pode acompanhar só parte do tabuleiro. Se deixarmos que Bagdá nos cegue quanto a outras crises, se permitirmos que a Argentina caia para o Terceiro Mundo, se não percebermos o sofrimento de Miranda e de milhões de pessoas como ela, nós e os sul-americanos sofreremos um xeque-mate.


Tradução de Paulo Migliacci


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