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ARTIGO
Se os EUA permitirem, a América do Sul poderá se tornar a próxima África
NICHOLAS D. KRISTOF
DO "THE NEW YORK TIMES"
Enquanto todos nos concentramos no distante Iraque, nossa vizinha imediata, a
América do Sul, está silenciosamente se despedaçando.
Maria Amelia Miranda chorava
ontem na favela de Iapi, em Monte Chingolos, sul de Buenos Aires.
Três de seus sete filhos, meninas
de oito, sete e três anos, tinham
vermes intestinais de até 30 cm, e
ela precisa removê-los periodicamente. Mas o vermífugo custa
US$ 1,40 a dose, e ela não tem como comprá-lo e ao mesmo tempo
manter seus filhos alimentados.
"Uma vez comprei um pouco
de remédio e dei algumas gotas a
cada um de meus filhos", conta.
"Mas não era uma dose integral, e
assim não fez efeito. Agora minhas crianças sentem coceira, e
minha filha de oito anos está perdendo peso. Se elas têm parasitas,
pouco importa o que comam."
Até hoje, a única parte do mundo que sofreu uma queda sustentada de renda foi a África. Mas a
América do Sul e a América Central correm risco de se tornarem
uma segunda África, no sentido
da negligência que lhes é reservada pelas instituições ocidentais e
do desespero de seus cidadãos, da
queda abissal dos padrões de vida, dos golpes de Estado e guerras
civis. Se permitirmos isso, nós
ianques pagaremos o preço em
termos econômicos, de drogas e
imigração, por muitos anos.
A política de Washington com
relação à América do Sul está em
completa desordem, e houve
pouca urgência quanto a um novo acordo entre o FMI e a Argentina. O Departamento do Tesouro, agora sob o comando de John
Snow, precisa despertar para as
responsabilidades internacionais.
O historiador econômico Angus Madison calcula que, em
1900, a renda per capita da Argentina era de cerca de US$ 2,8 mil,
um pouco abaixo da americana.
A Argentina foi um dos maiores
fracassos dos últimos 100 anos,
porque hoje sua renda per capita
está em cerca de US$ 2,5 mil. A
trajetória fica evidente em famílias como a de Eduardo Alberto
William, que deve o sobrenome a
um bisavô que imigrou da Inglaterra para dar melhores perspectivas aos descendentes. Foi uma má
aposta. William é um dos 125 mil
separadores de lixo do país, que
recolhem produtos recicláveis e
ganham cerca de US$ 2 por dia.
Com uma economia que se contrairá em mais de 10% neste ano, a
Argentina decretou moratória.
"Como podemos pagar?", perguntou Miram Ganduglia, que
cuidava de sua plantação de legumes. "Estamos passando fome."
Fome? Ela se veste bem e tem as
unhas dos pés e das mãos pintadas de vermelho. Mas os argentinos estão traumatizados porque
pensavam, até há pouco, que viviam no mundo moderno e hoje
se vêem forçados a sobreviver às
duras penas no Terceiro Mundo.
Não é só a Argentina, pois toda
a América do Sul está em crise.
Uruguai, Paraguai e Bolívia estão
em situação tão ruim quanto a
dos argentinos, ou pior. O Brasil
pode seguir o vizinho e declarar
moratória da dívida externa, o
que abalaria a economia mundial.
A Colômbia está se desintegrando em guerra civil, e a Venezuela
passa por uma paralisia devido a
uma crise política que poderia redundar em guerra. As políticas de
livre mercado definidas sob o
"Consenso de Washington" nos
anos 90 estão desacreditadas, em
parte porque não combatemos a
corrupção com a agressividade
devida. E em países tão diversos
como Brasil, Venezuela, Peru e
Equador as eleições recentes foram vencidas por esquerdistas ou
populistas, o que tende a causar
nervosismo aos americanos.
O Iraque, evidentemente, é de
primeira importância, porque é
provável que em breve estejamos
em guerra. Mas no mundo de hoje, como no xadrez, não se pode
acompanhar só parte do tabuleiro. Se deixarmos que Bagdá nos
cegue quanto a outras crises, se
permitirmos que a Argentina caia
para o Terceiro Mundo, se não
percebermos o sofrimento de Miranda e de milhões de pessoas como ela, nós e os sul-americanos
sofreremos um xeque-mate.
Tradução de Paulo Migliacci
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