São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS
Hiperliberalismo pode marcar início do século

GILSON SCHWARTZ
da Equipe de Articulistas

Continua ganhando impulso o movimento com que os mercados de capitais norte-americanos passam por cada onda de ansiedade com relação ao fim da bolha especulativa, reforçando, a cada miniciclo de realização e recuperação nas Bolsas, a crença no poder da tecnologia e da nova economia.
Talvez seja cedo para afirmar categoricamente, mas já surge ao menos a impressão de que nesse ambiente ganham força também as visões econômicas mais liberais. Para quem achou o liberalismo dos anos 80 algo "fora do lugar" e o neoliberalismo dos anos 90 simplesmente um delírio, a primeira década do século 21 poderá colocar em cena uma espécie de ultraliberalismo comandado pela confiança cega na capacidade de auto-regulação dos mercados financeiros. Especialmente se não houver uma recessão ou mesmo uma correção mais forte no rumo da economia dos EUA.
Um indício dessa tendência é o debate sobre a chamada reforma do sistema financeiro internacional. Nos últimos cinco anos, o tema passou de candente a burocrático. E, entre os que ainda sustentam o debate, ganham peso as visões mais conservadoras.
Não é difícil identificar, em economia, o que é o pensamento conservador. Ele em geral repousa sobre três idéias fundamentais: as instituições atrapalham o funcionamento dos mercados; os pobres são os maiores responsáveis por sua pobreza; o conhecimento e a educação têm poder transformador.
A chamada reforma do sistema financeiro internacional é claramente um campo em que esses três elementos concorrem para formar uma visão articulada e a cada dia mais predominante.
As instituições atrapalham: em vez de fortalecer a regulação dos fluxos financeiros e forçar bancos, corretoras e outros agentes a pagar mais pelas crises, ganha força a tese de que instituições como o FMI, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento atrapalham mais do que ajudam.
Exemplo dessa visão é o relatório que uma comissão do Congresso dos EUA produziu há poucas semanas. Entre outras pérolas, ele sugere a simples retirada desses organismos do financiamento a países de "renda média" (que estariam entre os miseráveis e os super-ricos).
Os pobres são os maiores responsáveis por sua pobreza: a idéia está presente não apenas na inclinação a atrofiar os organismos multilaterais, mas na rejeição inevitável do que se conhece como a sua função de "emprestadores de última instância".
Para os ultraliberais, sempre que um banco central faz uma operação de resgate de um banco prestes a quebrar, está premiando a irresponsabilidade (problema conhecido na literatura especializada como "risco moral"). Na prática, estaria induzindo todos os bancos à irresponsabilidade, pois cada um agiria a partir do pressuposto de que, em situação de crise, o banco central viria em seu socorro.
O "risco moral" de fato existe, e lidar com esse problema não é trivial. Também não existem soluções puramente técnicas. O ultraliberalismo, no entanto, está na transferência pura e simples do risco moral para o conjunto dos países. Afirmar que a atuação de emprestadores de última instância apenas aumenta a irresponsabilidade dos governos é o mesmo que, na prática, inviabilizar a existência não apenas de redes de segurança, mas também de políticas de desenvolvimento e planejamento público de longo prazo.
Sem essa dimensão pública, de longo prazo e supranacional, cada país que ainda esteja fora do clube dos mais ricos e desenvolvidos fica relegado à própria sorte.


Texto Anterior: Catálogos não temem a rede mundial
Próximo Texto: Opinião Econômica - Rubens Ricupero: Comemorar o quê?
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.