São Paulo, sexta-feira, 12 de março de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Em defesa do consumidor

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Tive a felicidade de trabalhar com o ministro Sérgio Motta na reestruturação do mercado brasileiro de telecomunicações, durante o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Projeto ambicioso, bem ao estilo de Serjão, ele buscava modernizar e abrir à competição nosso sistema, baseado no monopólio estatal, herdado do regime militar. Durante mais de dois anos, ele liderou uma equipe de trabalho na busca do melhor desenho institucional e legal para garantir a modernização desse setor.
O projeto encaminhado pelo governo ao Congresso Nacional, que, aprovado, deu origem a uma nova lei sobre o sistema de telecomunicações no Brasil, estava centrado em dois pilares, ou duas cláusulas pétreas, para usar uma linguagem do direito constitucional: a competição no mercado e a obrigação da universalização dos serviços. A competição é o único instrumento viável para garantir a melhor qualidade e o menor preço ao consumidor; a obrigação da universalização por parte das concessionárias privadas é a forma mais eficiente de garantir que o cidadão de baixa renda tenha acesso garantido, independentemente de questões econômicas, ao telefone e à internet.
Lembro-me bem de ouvir de Serjão, em várias ocasiões, a razão para o estabelecimento claro dessas duas idéias básicas de sua proposta: "Não quero que a esperteza do brasileiro acabe por levar a Anatel, por meio de artifícios jurídicos, a agredir esses dois pilares fundamentais do novo sistema no futuro". Serjão sabia que seria impossível escrever um conjunto de leis que garantisse de forma perene a aplicação desses valores, que vão contra os interesses econômicos dos concessionários privados.
Profético Sérgio Motta! Menos de seis anos depois de sua morte, estamos ameaçados de ver uma das duas cláusulas pétreas da legislação atual sucumbir à esperteza de alguns empresários, com prejuízo de todos nós, brasileiros. O que Sérgio Motta não poderia prever é que isso ocorreria sob o patrocínio de um governo do PT. Apesar de adversário político de Lula e de seus liderados, Sérgio Motta morreu acreditando nos valores e utopias defendidos pelo partido da estrela.
Sirvo-me deste meu espaço semanal na Folha para reagir com indignação -e creio que tenha o direito ou talvez a obrigação a isso por ter trabalhado na implantação do modelo que temos hoje no Brasil- à tentativa de um consórcio formado pelas empresas de telefonia fixa que operam no Brasil de comprar a Embratel, conforme amplamente noticiado nos jornais dos últimos dias. Essa operação, que, segundo a imprensa, conta com o apoio do ministro Luiz Gushiken e do Palácio do Planalto, configurará uma agressão ao princípio da concorrência no setor de ligações de longa distância.
Como essa operação fere, de maneira clara, o artigo da lei que veda a compra de uma empresa concessionária de um serviço de telefonia (no caso, o serviço de longa distância da Embratel) por outra concessionária do mesmo serviço (no caso, as três empresas de telefonia fixa), foi desenvolvido um mecanismo legal para obter a autorização da Anatel. A Embratel será dividida em duas companhias, ficando uma com os serviços de longa distância (que depende de uma licença da Anatel e, portanto, está sujeita à proibição citada acima) e uma outra que ficará com outros serviços que não dependem de licença para funcionar e, portanto, pode ser adquirida pelas empresas de telefonia fixa. Posteriormente, as empresas de telefonia fixa venderiam a primeira empresa, cumprindo a limitação que está definida na lei.
Aqui vem, então, a esperteza tão temida por Serjão, conhecedor profundo da natureza de certos grupos no Brasil. Se a infra-estrutura de cabos de fibra ótica da Embratel ficar com a empresa a ser controlada pelas de telefonia fixa, estará configurada, na prática, a eliminação da Embratel como concorrente no mercado de ligações de longa distância -e, portanto, agredida a cláusula pétrea da manutenção da competição do mercado.
Até agora, a Anatel não se manifestou sobre a operação acima descrita, mas creio ser minha responsabilidade acompanhar esse caso e alertar a opinião pública para os riscos que tudo isso representa para o consumidor brasileiro. Quero também deixar registrado que, caso isso se realize, a agressão ao princípio da competição que pode ocorrer na venda da Embratel será de responsabilidade do governo Lula -que tanto nos criticou em 1998, quando se fez a privatização da Telebrás.
Não venham culpar, no futuro, o PSDB e a equipe de Sérgio Motta caso sejam criadas, no setor de telecomunicações de longa distância, as condições monopolistas que temos hoje na telefonia fixa.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 61, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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