São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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ARTIGO

As mentiras de Wall Street, na opinião de um dos mentirosos

KATE JENNINGS

No mês passado, durante a temporada de divulgação de balanços e assembléias de acionistas, as empresas norte-americanas reasseguraram o compromisso com os chamados "valores centrais", como integridade, liderança, disciplina, responsabilidade, respeito e excelência.
Os jornais estão repletos de relatos de lapsos nesses mesmos "valores centrais". Durante os anos do boom dos mercados financeiros, na década de 90, eu escrevia discursos para os grandes bancos de investimentos de Wall Street. Ao lembrar desses textos, é difícil encontrar algo que tenha escrito que não apresente exageros, mentiras, evasivas ou uma lógica invertida. Mas, enquanto meus elaborados discursos mantiveram um otimismo agressivo, ninguém se incomodou.
É certo que os cínicos faziam piadas sobre o jargão. "Agregar valor", dizíamos, era um código para "demitir funcionários e aumentar o preço das opções de ações". Na época, bancos estavam praticamente fabricando dinheiro, investidores nadavam em dólares e todos os bolsos estavam forrados de gratificações.
Agora, quando se revela a extensão da audácia então praticada, não só em empresas agressivas e iniciantes, mas também nas grandes companhias e nos maiores bancos do mercado, ninguém mais vê graça. Os executivos proclamavam integridade enquanto manipulavam resultados e embolsavam opções de ações.

Muralha demolida
Os executivos gostavam de ostentar frases como "foco no cliente" e "homem de confiança", enquanto demoliam "muralhas da China" e criavam conflitos de interesses ("muralha da China" é um jargão de Wall Street para a separação entre analistas de executivos em bancos de investimento, necessária para que os analistas não recomendem investimentos do interesse do banco).
Nem todos os executivos agiram assim, é claro. Mas estamos passando por um maremoto de hipocrisia. Tal sentimento solapa a fé não só naqueles para quem governança corporativa é coisa de maricas. Desacredita também executivos que levam a sério suas obrigações para com todos que dependem deles: clientes, acionistas, empregados, aposentados e sociedade em geral.
Apesar de tudo, os exageros retóricos das empresas continuam, sem controle, o que me sugere uma citação de George Orwell: "Se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento". O jargão dos analistas de investimento, que no momento passam pelos seus 15 minutos de escrutínio público, serve como exemplo perfeito.
No passado, quanto o trabalho de pesquisa era uma ocupação monótona, os analistas ofereciam recomendações de compra, venda e retenção para as ações. Mas, quando se transformaram em figurões de TV, decidiram expandir suas classificações e adotaram categorias contraditórias como "acumular", "desempenho de mercado" e "visibilidade reduzida". Filtre as percepções por meio desse tipo de palavreado, banque o processo com um salário interessante e todos os "valores centrais" rapidamente perdem a consistência.
Depois de muita hesitação, o Merrill Lynch está propondo que seus analistas retornem ao antigo sistema de três recomendações básicas. Por que o banco teve de esperar que Eliot Spitzer, procurador do Estado de Nova York, decidisse agir a respeito antes de tomar essa medida? Os analistas agora podem voltar a dizer o que devem, sem meias palavras.

Integridade
Se pensarmos bem no assunto, deveríamos pedir o mesmo a todo executivo. Mas é uma probabilidade remota, se levarmos em conta o uso desavergonhado de palavras como "integridade" e "excelência" nos balanços de empresas que estão sob investigação ou foram multadas por delitos.
As empresas parecem ter se esquecido de que integridade e excelência eram os valores da Enron (energética que quebrou no ano passado), gravados em bugigangas e decorando escrivaninhas em toda a empresa. São palavras que precisam de um longo repouso no mundo corporativo. Elas perderam o valor, até mesmo para as empresas que as respeitam.
Os relatórios anuais do mês passado exibem espantosa desconsideração aos sentimentos do público. É mais uma prova daquilo que promotores e consultores já descobriram nesse mundo pós-colapso da Enron: muitas companhias simplesmente ainda não entenderam.
Trancados em seus arranha-céus suntuosos, por trás de uma blindagem de arrogância, protegidos por falanges de advogados e profissionais de lobby, os executivos não parecem compreender que nós -clientes, acionistas, empregados, aposentados- estamos cansados da distância entre suas intenções reais e suas intenções declaradas.
Estamos cansados de desinformação e intimidação, petulância e condescendência. Estamos cansados desse espírito que oferece respeito superficial aos "valores" mas rotineiramente atravessa a fronteira entre o legal e o criminoso. Estamos cansados de empresas que nos dizem que não precisam de regulamentação, que são capazes de se fiscalizar, quando todas as indicações sugerem o contrário.
Estamos cansados da defesa automática baseada em alegações de "acusação infundada" que as assessorias de imprensa corporativas costumam empregar, e das subsequentes disputas judiciais que duram uma eternidade. Estamos cansados de atos paliativos de civilidade corporativa. Não aceitamos a idéia de que o uso de palavras como "integridade" e "excelência" é válido na comunicação das grandes empresas porque as palavras representam uma aspiração para elas. Queremos que se tornem fatos.


Kate Jennings, que trabalhou para bancos de investimentos, escreveu "Moral Hazard" ("Risco Moral"), um romance sobre Wall Street. Este artigo foi publicado pelo "Financial Times".



Tradução de Paulo Migliacci


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