São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Crises financeiras na periferia

LUIZ GONZAGA BELLUZZO
No editorial "A periferia volta à origem", do dia 8 de julho, esta Folha chama a atenção para a "variedade geográfica, política e de estrutura econômica dos países afetados pelo problema (das crises financeiras e cambiais). Diante dessa diversidade de situações, continua o editorial, "uma teoria geral da crise tornou-se impossível... Há entre os vários episódios um traço em comum apenas: todas essas economias, antes de emergentes, são periféricas".
A ocorrência de crises financeiras e cambiais nos países periféricos não é um fenômeno novo. Exemplo: o período situado entre 1880 e a eclosão, em 1914, da Primeira Grande Guerra -a belle époque, do padrão-ouro e do fio de barba- foi pródigo na produção de episódios dessa natureza. Eram tão frequentes os ataques desferidos contra as paridades estabelecidas -legal ou informalmente- entre moedas fracas e o ouro, quando súbitas e pronunciadas as quedas de preços dos títulos de dívida emitidos pelos governos, bancos e empresas localizados em países da periferia ou semi-periferia capitalista. Na semi-periferia estavam incluídos países como a Rússia, a Itália e o Império Austro-Húngaro.
A longa e celebrada estabilidade proporcionada pelo padrão-ouro, relatam alguns estudiosos, foi conseguida por meio da coordenação exercida pela política monetária do Banco da Inglaterra, induzindo, com eficiência, os fluxos de capitais de curto prazo a se movimentarem na direção da estabilidade financeira e da defesa das paridades.
Se realmente existiram, desencarnados das elucubrações de seus teóricos, tais ajustamentos suaves e benfazejos ficaram restritos ao círculo privilegiado dos países centrais e credores.
Mesmo os Estados Unidos, uma economia em rápida ascensão, poderoso competidor nos mercados mundiais de alimentos, matérias-primas e manufaturados, eram frequentemente afetados por severas crises financeiras e cambiais, dada a sua posição devedora e à reputação, na melhor das hipóteses duvidosa, de Nova York como praça financeira internacional.
Colapsos de preços dos títulos e corridas bancárias sucederam-se na posteridade da Guerra Civil. Os Estados Unidos voltaram ao padrão-ouro em 1879 e logo depois, em 1894, sofreram as consequências de uma grave crise financeira, o que se repetiria mais tarde, entre 1893/97.
Em artigo recente, o economista italiano Marcello de Cecco mostra que há mais semelhança entre o crepúsculo do século 19 e o ocaso do século 20 do que suspeita a nossa vã filosofia. Na passagem dos oitocentos para os novecentos, o auge do comércio internacional -expresso no crescimento espetacular do volume e do valor das exportações mundiais, bem como na diversificação do intercâmbio de mercadorias e na incorporação de novas áreas- foi acompanhado de uma impressionante expansão das transações financeiras. Esse "novo" florescimento da finança internacional, como todos os ciclos de crédito, estava primordialmente amparado no crescimento dos negócios do desconto de letras de câmbio, originárias de compra e venda de mercadorias.
O impulso decisivo para a espetacular globalização financeira daqueles tempos seria dado, no entanto, pelo crescente endividamento dos países da periferia e da semi-periferia do sistema, obrigados a tomar empréstimos nas praças financeiras mais importantes com o propósito de sustentar a conversibilidade de suas pobres moedas, diante dos problemas recorrentes de balanço de pagamentos, normalmente associados a perdas nas relações de troca ou a flutuações periódicas no nível de atividades nos países centrais.
A acumulação de estoques respeitáveis de dívida externa naturalmente gerava um contrafluxo, da periferia para o centro, correspondendo aos pagamentos dos juros, cuja periodicidade era fixada contratualmente. Essa circunstância permitia, aos profissionais da arbitragem, a determinação do momento em que haveria uma concentração de compras de moeda estrangeira, da parte daqueles países com dificuldades para cobrir as necessidades de financiamento de seu balanço de pagamentos.
As nações devedoras e deficitárias estavam, portanto, condenadas a defender a conversibilidade. Enquanto isso, os que faziam arbitragem internacional, não raro os mesmos que emprestavam em divisa forte, transformavam-se em especuladores, tratando de tomar pesadas posições contra as moedas "fracas", tanto nos mercados à vista quanto em operações a termo. O risco era pequeno, já que o controle das informações permitia não só calcular antecipadamente as necessidades de financiamento dos países periféricos, como influenciar a "opinião" dos mercados, que se convenciam da situação de fragilidade dos devedores.
A especulação contra as moedas dos devedores habituais, na maioria das vezes, não se fazia diretamente nos mercados cambiais. Concentravam-se nos mercados de títulos da dívida externa, em geral nas praças financeiras em que a dívida da periferia era avaliada e negociada. As crises cambiais geralmente eram desencadeadas por uma venda em massa dos papéis "condenados". A queda pronunciada no preço dos títulos provocava pânico nos detentores "nacionais" da dívida soberana, que, ao tentar liquidar suas posições, automaticamente "vendiam" a moeda local. A perspectiva iminente de desvalorização e provável declaração de inconversibilidade da moeda sob ataque precipitavam vendas adicionais da divisa fraca.
Talvez não seja mesmo possível a elaboração de uma "teoria geral" das crises financeiras e cambiais, mas há uma profusão de estudos históricos e teóricos -muitos deles esquecidos ou ignorados- que permitem algumas conclusões sobre os problemas cambiais e financeiros que castigam, de tempos em tempos, a periferia do capitalismo.
Não parece haver dúvida de que a estabilidade cambial e financeira torna-se um objetivo mais difícil de ser alcançado quando os mecanismos de ajustamento entre deficitários e superavitários, devedores e credores, são entregues aos critérios e julgamentos dos mercados financeiros privados e "desregulamentados".


Luiz Gonzaga Belluzzo, 55, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).



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