São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA

Combustíveis e risco regulatório

GESNER OLIVEIRA

A discussão desta semana em torno do preço dos combustíveis expôs algumas das fragilidades regulatórias da economia brasileira atual. Na ausência de mecanismos mais eficazes para inibir aumentos dos preços ao consumidor, flertou-se com um acordo em torno da fixação das margens da revenda e distribuição de combustíveis.
Sabe-se, no entanto, que acertos dessa natureza têm escassa chance de êxito. Em primeiro lugar, a falta de informações acuradas por parte das autoridades sobre a estrutura de custos das empresas e a pulverização do setor tornam a fiscalização praticamente impossível.
Em segundo, a fixação de margens gera distorções ao impor tratamento uniforme a empresas em situações muito distintas, desestimulando a redução de custos e melhoria dos serviços. Se a moda pega, corre-se o risco de reeditar acordos setoriais promovidos pelo próprio Estado na melhor tradição do velho Conselho Interministerial de Preços (CIP) e ao arrepio da legislação de defesa da concorrência.
Tal ceticismo em relação a acordos com postos de gasolina não implica uma fé cega nas forças do mercado. Este último apresenta falhas graves em inúmeros segmentos que exigem correção mediante regulação específica. As regras do jogo não podem, contudo, estar sujeitas a mudanças súbitas ao sabor das oscilações de índices de inflação. Em particular, a política em relação ao setor sucroalcooleiro está a exigir algumas definições de médio prazo que afetam a matriz energética brasileira e devem estar a salvo de comportamentos oportunistas dos setores público ou privado.
Fixada uma regulamentação adequada, convém permitir que o mercado funcione, limitando a ação governamental àqueles casos em que há evidências de infração à ordem econômica. Assim, por exemplo, os casos de indícios de formação de cartel em algumas das principais cidades do país na revenda de combustíveis deve merecer a devida atenção, respeitados sempre o sigilo das averiguações preliminares e o devido processo legal.
Uma rápida inspeção no capítulo sobre as penas da lei 8.884/94 permite concluir que não faltam sanções à prática de cartel. Esta última pode acarretar, entre outras punições, multas que chegam a 30% do faturamento da empresa e a 6 milhões de Ufir no caso de associações que promovam condutas comerciais uniformes. Administradores que venham a praticar ilícitos antitruste podem ser multados em até 15% do faturamento da empresa. Tais multas podem ser dobradas em caso de reincidência. Uma punição sólida juridicamente e significativa economicamente é mais eficaz do que qualquer acordo de preços, tabelamento ou ameaça de ministro.
O problema reside, contudo, na dificuldade de implementação da lei 8.884. A carência crônica de recursos e o excesso de fragmentação dos órgãos de defesa da concorrência (Cade, SDE e Seae, além das agências regulatórias setoriais) terminam por comprometer a rápida punição dos cartéis. Um processo administrativo pode se arrastar por anos sem efeito prático (a não ser o de aumentar a incerteza para o setor privado), gerando um sentimento de frustração e impotência que talvez explique o ressuscitamento esporádico de acordos setoriais. Parece oportuno, portanto, um esforço de maior coordenação entre os órgãos existentes, procurando eliminar duplicação de tarefas e simplificar a vida do administrado.
Ressalte-se, igualmente, a boa e nova idéia veiculada nos últimos dias de estimular a colaboração com as autoridades por parte de membros de eventual cartel. Em várias jurisdições, como EUA, Canadá e União Européia, a redução ou mesmo eliminação das penas a participantes de cartéis tem facilitado a investigação e a punição de várias infrações. Segundo relatório da Comissão Especial do Departamento de Justiça dos EUA, só em 1999 o valor das multas teria atingido mais de US$ 1 bilhão, superior à soma dos dez anos precedentes.
Tais programas de leniência, como costumam ser chamados, poderiam constituir aperfeiçoamento à lei 8.884 na esteira de modificações semelhantes que vêm sendo discutidas no âmbito do direito penal. Do ponto de vista econômico, a medida é eficiente, pois aumenta a instabilidade do cartel ao estimular a delação. As variações nas condições de custos e demanda já provocam, por vezes, a defecção de membros de cartéis privados. O prêmio pela colaboração aumenta a probabilidade de punição, reduzindo as vantagens econômicas da infração.
A economia brasileira passou por transformações profundas na última década sem amadurecimento correspondente nos planos cultural e institucional. Note-se que as mudanças, como as anunciadas nesta semana, não requerem alterações constitucionais; em alguns casos, sequer exigem alterações legais de qualquer natureza, bastando uma mudança de mentalidade. Urge, portanto, atacar o risco regulatório que inibe o investimento e a modernização do país.


Gesner Oliveira, 44, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-SP e ex-presidente do Cade.
E-mail - gesner@fgvsp.br


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