São Paulo, sexta-feira, 12 de outubro de 2001

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OPINIÃO ECONÔMICA

Colando os cacos do Mercosul

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Finalmente Brasil e Argentina resolveram acabar com a guerrilha verbal e tomar a iniciativa de tentar salvar o Mercosul. Já não era sem tempo, depois de várias declarações insanas do ministro da Economia de nosso vizinho, o hoje desmoralizado Domingo Cavallo. As discussões sobre salvaguardas compensatórias e uma enorme lista de exceções foram o alto preço pago pelo Brasil para manter a ancora da chamada TEC (Tarifa Externa Comum). As justificativas para esses remendos precários e grotescos no casco do Mercosul vieram da crise internacional que estamos vivendo. Uma mentira oficial que se presta a salvar as aparências e a manter o acordo vivo por mais algum tempo.
A crise vivida pelo Mercosul tem uma explicação estrutural e não apareceu em razão de questões conjunturais, que estão ocorrendo fora das fronteiras de seus países-membros. O projeto do Mercosul foi uma das grandes vitórias da diplomacia brasileira, que conseguiu romper com um isolamento entre Brasil e Argentina que durava décadas.
Para que o leitor da Folha tenha uma idéia da paranóia que influenciava as relações entre dois vizinhos tão complementares e próximos culturalmente, cito alguns exemplos. As bitolas das ferrovias dos dois países eram diferentes, para que não houvesse o risco de que os trens brasileiros pudessem trafegar na malha argentina e vice-versa. Da mesma forma, a energia elétrica nos dois países é gerada em ciclagens diferentes para também impedir uma integração das redes de transmissão. Da mesma forma o Brasil não importava trigo e petróleo da Argentina para prejudicar seu orgulhoso vizinho. A retaliação comercial do outro lado também era consciente.
No campo político, depois da redemocratização dos dois países, essas diferenças foram sendo eliminadas de uma forma madura e hábil. Descobriram-se também interesses políticos comuns, como o de trazer o Paraguai para o lado formal e democrático da região. Ao mesmo tempo as relações empresariais foram retomadas e descobriu-se o forte caráter complementar das duas economias. Os interesses comerciais comuns, principalmente a luta contra o protecionismo agrícola dos americanos e europeus, foram outra descoberta fantástica.
Todos esses fatores levaram as lideranças diplomáticas e empresariais a pensar mais alto e a sonhar com o Mercosul. Esse projeto ambicioso, nos moldes do Mercado Comum Europeu, tinha a vantagem adicional de fazer um contraponto com o projeto americano para as Américas, a Alca. A nova escala política e econômica que os membros do Mercosul alcançariam ao integrar suas economias seria um instrumento de barganha muito forte quando viesse o rolo compressor da maior economia do mundo.
A pergunta que o leitor deve estar fazendo neste ponto é: por que então o Mercosul está em crise quase terminal? A resposta é muito simples: porque faltou na estruturação do Mercosul uma das três pernas que são necessárias para o sucesso de um arranjo como esse. Esse elo faltante é chamado de homogeneização das condições macroeconômicas. Não foi por outra razão que a causa da crise atual tenha sido um dos itens mais delicados desse elo: a divergência dos regimes cambiais entre Brasil e Argentina.
O que mais chama a atenção de um analista isento na crise do Mercosul é como uma questão fundamental como essa foi deixada de lado. Bastava um mínimo de atenção para a história da experiência européia para que os responsáveis pelo projeto entendessem que essa etapa era, além de crucial, a mais delicada de todas. No caso do Mercado Comum Europeu, a homogeneização das políticas cambiais começou com a experiência da chamada Serpente Européia e terminou, muito tempo depois, na implantação gradual da moeda única, o euro. Paralelamente a esse longo processo de unificação cambial negociou-se, durante muitos anos, a homogeneização das políticas fiscais e monetárias, o que desaguou no chamado Tratado de Maastricht.
Nada disso aconteceu na experiência do Cone Sul da América Latina. Ficamos apenas em declarações vazias e demagógicas dos ministros ligados às economias dos países-membros do acordo. Pior ainda, Brasil e Argentina seguiram institucionalidades e políticas cambiais opostas e excludentes. Nos primeiros anos do Plano Real, a política cambial do Brasil mascarou essas diferenças e o problema ficou escondido debaixo do tapete. Mas, a partir da efetiva flutuação do real e, principalmente, depois da fase terminal da crise Argentina e da desvalorização galopante de nossa moeda neste ano, a crise estourou com vigor.
Agora não sobra outra alternativa senão tentar colar os cacos desse projeto ambicioso e implantado com a irresponsabilidade que infelizmente parece ser a marca de brasileiros e argentinos.

 

Peço licença a meus leitores para utilizar este espaço que me resta para uma lembrança a Roberto Campos, que morreu nesta semana. Não vou repetir os comentários que já foram feitos a esse grande economista e político brasileiro. Quero apenas lembrá-lo como meu primeiro patrão no Investbanco, banco de investimento no qual trabalhei entre os anos de 1967 e 1971. Experiência muito rica, pois eu era um engenheiro recém-formado, com militância ainda muito forte na esquerda radical católica e que via no então presidente do banco o reacionário e entreguista Bob Fields. Nesses cinco anos aprendi muito com ele. Professor Campos, como ele era chamado, mesmo conhecendo meus antecedentes, sempre teve uma relação muito paternal comigo. Foi trabalhando diretamente com ele que amadureci na minha profissão, aplanei os excessos socialistas da juventude e moldei de forma mais densa os valores social-democratas que carrego hoje. Bob Fields foi um dos meus primeiros mestres!


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 58, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br

E-mail - lcmb2@terra.com.br


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