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São Paulo, quarta-feira, 12 de novembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Passando do limite

PAULO RABELLO DE CASTRO

Numa edição eletrônica de sábado, a imprensa oficial traz a medida provisória nš 135, datada de 31 de outubro último. Em três capítulos volumosos, com 69 artigos, o governo federal mais uma vez atropela a democracia ao abusar do recurso excepcional que lhe confere o artigo 62 da Constituição Federal, quando permite ao Poder Executivo vestir a camisa de outro poder -o Legislativo- para editar, sem consultar ninguém, ordenamentos considerados de extrema relevância e urgência.
Nada é "relevante e urgente" na MP 135. Nos seus três capítulos, um ocioso código tributário é editado, a começar pela elevação em 153% do percentual da Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Nos outros capítulos, a MP versa sobre IPI, Imposto de Renda, regras aduaneiras e muito mais que possa pegar "carona" na nova legislação sem Legislativo.
Matéria tributária, por excelência, é do âmbito da cidadania. Só em tiranias e ditaduras, ou em monarquias absolutistas do passado remoto, o soberano enfiaria a mão na bolsa do cidadão sem pedir licença aos representantes do próprio povo. O Brasil é hoje um país machucado em matéria tributária. Não fosse só por nosso campeonato mundial em taxação -pesquisa publicada, dias atrás, pela consultoria internacional Deloitte nesta Folha (07/11/03, pág. B3) confirma que somos os campeões do mundo em tributar a produção e a renda das empresas-, o Brasil ainda padece do mal pior, que é a absoluta insegurança jurídica nesse campo, pelas práticas autoritárias que nossos governantes utilizam para resolver seus problemas de caixa.
A elevação da Cofins, de 3% para 7,6% de uma só tacada, embora revestida do racional argumento de eliminar a chamada "cascata tributária" que taxa cada etapa da produção sem descontar as precedentes, representará um acréscimo brutal de carga fiscal sobre os elos da produção que justamente provêm das contribuições do trabalho (salários e remunerações) e da capacidade empresarial (lucro). As receitas financeiras das empresas também serão taxadas, portanto desestimulando a retenção de lucros para futuros investimentos empresariais, logo quando o país mais necessita de empresários ganhando dinheiro e dispostos a aplicar esse resultado no próprio negócio. Um desastre.
Mas, como tudo na vida, até o mal tem suas compensações. O atropelamento da cidadania perpetuado pelo governo, no exato momento em que o Congresso Nacional se debruça sobre o texto de "reforma" tributária que o próprio Executivo lhe enviou para deliberação, desperta em todos nós, legisladores, empresários, trabalhadores, acadêmicos, simples cidadãos, o mesmo espírito que um dia levou o bravo Tiradentes a perder a vida pelo direito de protestar contra a derrama de impostos cobrados aos brasileiros pelo colonizador de então.
Ao passar dos limites, o governo empurra a paciência dos governados à beira do precipício, onde o pensamento se aguça e as mentes podem operar além do ócio dos seus neurônios aposentados. Ao ultrapassar a fronteira do razoável, o governo começa a esbarrar no muro da cidadania, que fatalmente o obrigará a buscar alternativas.
Há alternativas. O equívoco-mor do Executivo não está na nova alíquota de 7,6% da Cofins em si, dada a sua não-cumulatividade, mas pelo aumento inaceitável de carga que representará, neste momento recessivo e de recuo de resultados empresariais. Com a arrecadação extra embutida na nova Cofins, somada ao 1,65% do PIS, também cobrado sobre o faturamento mensal, o governo chegará a uma alíquota de 9,25%, ou seja, quase 10% de tudo o que se fatura neste país. A previsão de arrecadação disso em 2004 passa de R$ 150 bilhões, equivalente ao total dos encargos da monstruosa dívida pública brasileira neste ano.
Para suportar tal esbulho, o cidadão quer ver compensações já, não depois, não no ano que vem, não em 2007 ou além. É para já. E o governo pode -se quiser- atender a esse justo protesto dos órfãos de Tiradentes, por medidas simples e de alto impacto social e popular. Com o resultado dos 9,25% da soma da Cofins e do PIS, o governo poderá simplesmente eliminar (é isso aí, extinguir, mesmo) três contribuições sociais de uma só vez: a do INSS (parcela da empresa), a do lucro líquido (CSLL) e a famigerada CPMF. Parece mentira, mas dá.
E imagine como seria aí o impacto positivo de anunciar que a parcela do INSS do empregador passará a ser recolhida pela nova Cofins -que é, essencialmente, destinada mesmo à Seguridade Social-, permitindo ao empregador reverter parte ou até todo o recolhimento que antes fazia ao INSS agora diretamente ao salário do seu empregado, sem custo extra de mão-de-obra. Seria uma tremenda injeção de ânimo na combalida economia. E o efeito de eliminar a CSLL, tirando mais esse gravame do lucro e deixando que o empresário invista esses recursos e gere mais empregos?
E a maravilhosa repercussão de reduzir ou mesmo extinguir a distorcida CPMF, tal como prometido em campanha política? Tudo isso está nas mãos do poderoso e ao seu alcance. De pouco adianta reunir lideranças civis em torno de uma mesa para listar sugestões de um futuro "pacto social", como vem tentando fazer o esforçado Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, se, na prática, nas ocasiões e situações propícias a um grande gesto de reconciliação do Estado para com a cidadania, permanece obliterada a visão maior do grande país que poderemos vir a ser.
Hoje, pedimos licença ao FMI, mas não pedimos por favor ao brasileiro que paga a festa.
Passamos do limite. Uma nova ordem se impõe.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br


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