UOL


São Paulo, quinta-feira, 13 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Um brasileiro merece o Prêmio Nobel da Paz

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O brasileiro tem forte inclinação ao elogio póstumo. "Está morto; podemos elogiá-lo à vontade", ironizava Machado de Assis. Por outro lado, cada um de nós é um inseguro, um humilde nato e hereditário. Um elogio, por mais modesto, provoca no brasileiro os célebres e consagrados "arrancos triunfais de cachorro atropelado".
Deveríamos então homenagear os vivos, sobretudo os vivos. Não são muitas as oportunidades que se oferecem, e não se deve deixar passar nenhuma.
Estou há tempos querendo escrever sobre o embaixador José Mauricio Bustani, ex-diretor-geral da Opaq (Organização para a Proscrição das Armas Químicas). Trata-se de uma grande figura. Bustani foi indicado pelo governo Lula para chefiar a embaixada do Brasil em Londres. Anteontem, a Comissão de Relações Exteriores do Senado aprovou o seu nome por unanimidade.
Como se sabe, Bustani foi derrubado do comando da Opaq, em 2002, após intensa campanha do governo Bush. Bustani desagradou aos norte-americanos por sua insistência em negar tratamento preferencial aos Estados Unidos no que diz respeito às inspeções militares e industriais, por não admitir interferências na administração da Opaq e, também (pasmem!), por se recusar a dar aos representantes de Washington acesso a informações referentes a outros membros da organização, fora dos mecanismos previstos nas suas regras de funcionamento.
Com o passar do tempo, foi ficando mais evidente que o afastamento de Bustani fazia parte da preparação da guerra contra o Iraque. O diretor-geral estava procurando obter a adesão do Iraque à Opaq e a consequente aceitação por Bagdá do regime de inspeções. Com isso, entretanto, desapareceriam ou ficariam enfraquecidas as justificativas para uma invasão do Iraque pelos EUA.
No momento em que o ataque dos EUA ao Iraque está por um triz, o nome de Bustani adquire uma importância especial. A sua atuação teve grande repercussão internacional. Segundo o George Monbiot, colunista do "The Guardian", "pode-se dizer que nos últimos cinco anos [Bustani" fez mais para promover a paz mundial do que qualquer outra pessoa na Terra" ("A War Against the Peacemaker", "ZNet Daily Commentaries", April 18, 2002, pág. 1, www.zmag.org).
O nome do diplomata brasileiro está na lista dos que estão sendo considerados para o Prêmio Nobel da Paz de 2003, como apurou o jornalista Jamil Chade, correspondente do jornal "O Estado de S.Paulo" em Genebra. Seria um prêmio mais do que justificado. Durante a sua gestão, a Opaq realizou 1.100 inspeções em mais de 50 países e supervisionou a destruição de 2 milhões de armas químicas e dois terços das instalações de armas químicas do planeta (Ian Williams, "The U.S. Hit List at the United Nations", "Foreign Policy in Focus", April 30, 2002, pág. 1, www.fpif.org). Entre a criação da Opaq, em 1997, e abril de 2002, quando Bustani foi afastado, o número de países-membros da organização subiu de 87 para 145. Não obstante, o diplomata brasileiro foi tratado pelo governo Bush quase como uma espécie de "Bin Laden burocrático" (Ian Williams, op. cit., pág. 1).
Quem tiver interesse em uma explicação circunstanciada desses episódios, apresentada pelo próprio protagonista, deve ler o ensaio por ele publicado no número mais recente da revista do Instituto de Estudos Avançados da USP (José Mauricio Bustani, "O Brasil e a Opaq: Diplomacia e Defesa do Sistema Multilateral sob Ataque", "Estudos Avançados", vol. 16, nº 46, setembro/dezembro de 2002).
Trata-se provavelmente do mais completo depoimento que o embaixador Bustani deu a respeito da Opaq, da sua luta para preservar a independência de uma organização internacional e da crise que levou a sua demissão. A revista está esgotada, mas o seu editor me autorizou a enviar cópia do ensaio aos leitores que manifestarem interesse.
Um dos aspectos lamentáveis dessa crise, relatado e documentado pelo embaixador Bustani, foi a atuação do governo Fernando Henrique Cardoso, em especial da vaporosa figura do então ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer. O apoio da chefia do Itamaraty a Bustani foi morno, mais pro forma do que efetivo, "apoio não-exclamatório", segundo declarou na época o ministro das Relações Exteriores para explicar a sua falta de empenho. Nos bastidores, o chanceler brasileiro combinara com o secretário de Estado dos EUA que o Brasil não faria lobby em favor da permanência do diretor-geral da Opaq, como revela documento do governo americano extensamente citado pelo embaixador Bustani (José Mauricio Bustani, op. cit., pág. 82).
Enquanto o governo FHC dava mais um dos seus vexames, do lado de fora da sala de conferências em que os países-membros da Opaq decidiam para decidir o futuro do diretor-geral da organização, Luciano Buratto, um jovem estudante brasileiro, fazia um protesto solitário. Carregava um cartaz que resumia tudo: "Bustani, orgulho dos brasileiros".


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net



Texto Anterior: Petróleo aumenta 3% com previsão de oferta escassa
Próximo Texto: Imposto de renda: Leão libera 3º lote residual de 2002
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.