São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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OPINIÃO ECONÔMICA

No coração da pobreza

RUBENS RICUPERO

Evito falar do que faço nas Nações Unidas por temer que não interesse ao leitor brasileiro. Não faltam, afinal, problemas terríveis ao Brasil, o que tende a criar certa indiferença pelos alheios. Alguns dos nossos exercem, aliás, uma espécie de fascínio mórbido e totalizador sobre a opinião pública. Veja-se, por exemplo, o espetáculo da decomposição das instituições parlamentares, que recomeça a cada manhã, mas jamais atinge o desenlace. É como em certos filmes-pesadelo de Buñuel, "O Anjo Exterminador", em que não se consegue transpor a saída ou, pelo inverossímil dos desdobramentos, "O Discreto Charme da Burguesia".
Toda essa abjeção moral parece ainda mais deplorável vista de Bruxelas, onde me encontro como secretário-geral da 3ª Conferência das Nações Unidas sobre os Países Menos Avançados. Os PMA ou LDCs, a sigla em inglês (Least Developed Countries), são a meia centena de nações atoladas na mais desesperançada miséria, o coração da pobreza mundial. Para ser exato, são 49, das quais 34 africanas. A maior delas, Bangladesh, fica na Ásia, continente em que estão algumas outras: Mianmar (a antiga Birmânia), Camboja, Laos, Nepal, Butão e certas ilhas do Pacífico. A fim de habilitar-se a essa qualificação, é preciso ser muito pobre mesmo. Tanto assim que, no inteiro continente americano, onde o que não falta é privação e esqualidez, só um país dentre 34 é PMA: o Haiti.
Quando se inventou a categoria, há um quarto de século, foi com a idéia de mobilizar a ajuda internacional para rapidamente "graduar" os países nela incluídos, fazendo desaparecer a classe. Os membros originais eram uns 25 e o número desde então quase dobrou. Só um foi "diplomado", Botsuana, graças aos diamantes. Em compensação, muitos que não estavam caíram no fosso, alguns como Angola, devido à guerra civil, outros em razão do colapso dos preços dos produtos primários e da explosão demográfica, como Senegal, que ingressou no grupo em janeiro.
A lista desses países e a das nações de guerra civil crônica, com episódios atrozes de genocídio, é quase coincidente: Afeganistão, Angola, Burundi, Camboja, Libéria, Serra Leoa, Somália, Ruanda, Moçambique. Dois deles, o Afeganistão e Moçambique, perderam mais de 1 milhão de vidas cada na guerra civil e a soma das vítimas nos outros chega a vários milhões. Não por acaso são os países mais afetados por catástrofes naturais -1.200 na última década; alguns como as ilhas do Pacífico e as zonas costeiras de Bangladesh estão ameaçados de desaparecer, como a Atlântida da lenda, tragados pela elevação do nível dos oceanos devido ao aquecimento da atmosfera.
Uma vez que se tomba na armadilha da pobreza extrema, a miséria tende a autoperpetuar-se. A renda dessa pobre gente é tão próxima da subsistência que não lhes deixa quase excedente para investir: o nível de poupança anda por volta de 15% do PIB ou menos. São, por isso, forçados a endividar-se além da conta e, mesmo quando cessam de pagar ou de receber recursos, a dívida não pára de crescer, alimentando-se do acúmulo dos atrasados. Essa situação afugenta, por sua vez, os investidores, e o ciclo infernal recomeça.
A fim de rompê-lo, seria indispensável crescimento de 7% ou 8% sustentado por duas décadas, com ingresso de recursos a título de ajuda que representassem ao menos o dobro dos atuais. Em vez disso, durante a década de 90, o crescimento médio foi de apenas 0,9% anuais, que se reduzem a 0,4% quando se exclui Bangladesh. Quase a metade do grupo, 22 países, atravessou a década ou estagnada ou em retrocesso. Desses últimos, 11, todos em guerra civil, conheceram recuos de 3% negativos durante dez anos!
É por isso que os 630 milhões de habitantes do PMA, um décimo da população mundial, correm o risco de se ver condenados à perpétua prisão desses bolsões de miséria, sem a menor chance de atingir as metas fixadas pela ONU para 2015 com vistas a reduzir a pobreza pela metade, dobrar os alunos da escola primária ou diminuir a mortalidade infantil em dois terços.
Embora muito longe do desenvolvimento ainda, o Brasil não pode ser insensível ao sofrimento dos PMA, sobretudo de nossos irmãos da África. Todas as nações africanas de língua portuguesa pertencem a essa categoria e o mesmo sucederá a Timor quando chegar à plena autonomia. Parte extremamente significativa de nossa população descende dos 4 milhões de mulheres e homens africanos forçados a vir para cá, a fim de construir em boa medida a infra-estrutura e a economia do país. Não é preciso lembrar que, de Aleijadinho e do pintor Ataíde ao padre José Maurício e Carlos Gomes, de Gonçalves Dias e Machado de Assis a Cruz e Souza e Lima Barreto, de Pixinguinha e João da Baiana a Cartola e Nelson Cavaquinho, a cultura brasileira não seria sombra do que é sem o aporte da África. Não será essa também uma dívida de honra, apesar de sua natureza humana, não-financeira?
Em gesto que, como diria o barão do Rio Branco, fica bem ao Brasil e é digno do povo brasileiro, o presidente cancelou a dívida do sofrido Moçambique. Teremos na conferência os ministros Celso Lafer e Ronaldo Sardemberg, que nos ajudarão a mostrar que o Brasil pode contribuir para as soluções dos problemas dos pobres entre os pobres, partindo de sua própria experiência da pobreza. Um exemplo é a adaptação às condições africanas dos programas de bolsa-escola e renda mínima, dos quais tenciono tratar proximamente.
No dia em que comemoramos a tardia abolição da perversão que fez o país nascer errado, é bom recordar do critério do julgamento pelo qual todos, indivíduos, nações e mundo, seremos julgados: como tratamos os mais débeis e vulneráveis dos nossos irmãos.


Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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