São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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LUÍS NASSIF

A crise da "Marquesa de Santos"

A abertura dos arquivos de Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara, traz à tona a história do mais influente jornalista brasileiro de todos os tempos, o demolidor de presidentes, o homem que mais eficientemente brandiu a bandeira da moralidade para deflagrar crises institucionais.
Você não imagina o que era a influência de Lacerda na época. Foi o principal responsável pelo apoio da UDN à candidatura de Jânio Quadros e o principal responsável, sete meses depois, por sua renúncia.
O que o teria levado a romper com Jânio foi o famoso episódio da mala. Estudante ainda, presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto, da PUC-SP, o empresário Mário Garnero foi testemunha privilegiada e ator involuntário dessa peça política.
Sob sua presidência, o centro havia se notabilizado por encontros bastante concorridos, nos quais se discutiam os problemas nacionais sob uma ótica não ideológica -posição difícil na época. Para a semana de 22 de agosto de 1961, fora planejado um encontro sobre integração nacional, abordando aspectos sociais, políticos e econômicos. Seria a "Semana da Unidade Nacional". Foram convidados 13 governadores, representantes das entidades empresariais, jornalistas. O governador Lacerda foi o último a confirmar presença, uma semana antes.
Lacerda acertou a vinda no dia 22 de agosto, uma quarta-feira. No dia anterior falaria Brizola e, no posterior, Magalhães Pinto. Lacerda ia chegar às 5 da tarde. Garnero foi ao aeroporto. Abreu Sodré, então presidente da Assembléia Legislativa, já o estava aguardando e convidou a ambos para passar, antes, por sua casa. Lacerda se mostrava irritado com Jânio e seu ministro da Fazenda, Clemente Mariani, que pouco antes havia assinado a instrução 204, aumentando a tributação sobre uma série enorme de produtos. Além disso, disse ter informações seguras de que o golpe estava em curso.
A "Semana" era transmitida pela TV Excelsior, e os encontros se davam no seu auditório, em frente ao restaurante Gigetto, na rua Avanhandava. O carro com os três desceu a rua Augusta e virou na Nestor Pestana. Em frente à Excelsior, havia uma multidão. Em protesto, estudantes de esquerda liderados por José Serra, naquela época líder estudantil, soltaram urubus -o apelido de Lacerda era "o corvo". Foi um pega-pra-capar com estudantes ligados à União Democrática Nacional (UDN). Lacerda conseguiu sair do carro e entrou pelo corredor lateral do teatro.
A mesa foi composta. Abriram-se as cortinas, e foi uma vaia só. Fez-se uma pequena pausa para o Hino Nacional. Antes de começar, Lacerda indagou de Garnero se a transmissão era ao vivo. Garnero confirmou. Lacerda levantou-se e começou a contar histórias da Guanabara. Mas durou pouco o roteiro programado.
"Não vim aqui para falar da Guanabara, mas de vocês, comunistas, que estão querendo derrubar tudo."
Explodiu um rolo monumental. O estudante Ricardo Zaratini, enorme, invadiu o palco e foi em direção a Lacerda. Foi detido no meio do caminho, mas Lacerda nem interrompeu o discurso.
"O que quero dizer a vocês é que não são esses comunistóides que estão criando problemas. Quem está criando problemas e articulando o golpe, e me convidou para participar, é Jânio Quadros."
Sua fala devia durar 30 minutos, mas foi até as 2 da manhã. Foi o maior índice de audiência que a Excelsior jamais havia experimentado. O impacto das declaração foi devastador, com manchetes em todos os jornais. Jânio não retrucou. No dia seguinte, Lacerda foi à TV no Rio, confirmou as denúncias. No dia 24, Jânio renunciou.
No período em que Lacerda esteve com Sodré, Garnero ouviu sua versão a respeito do famoso episódio da mala.
Segundo Lacerda, Oscar Pedroso Horta, então ministro da Justiça, convidou-o para ser hóspede de Jânio. Ele preparou a mala e seguiu para Brasília. Ao chegar ao palácio, o porteiro lhe disse que o presidente havia pedido que ele deixasse a mala na portaria e fosse para o hotel Nacional, que Horta o estava aguardando para uma conversa urgente. Lacerda estranhou, mas foi. Ficaram bebendo até as 4 da manhã. Voltou para o palácio de madrugada, a mala continuava na portaria e a ordem que tinham era para não entrar.
Ele imaginou que estava sendo jogado para escanteio na articulação ou que poderia estar sendo utilizado como bode expiatório. Foi para o aeroporto, pegou o avião das 5 da manhã, voltou para o Rio e começou a fazer as denúncias.
Tempos depois, Lincoln Gordon, ex-embaixador americano em Brasília, contou que, naquela madrugada, Lacerda não foi recebido porque Jânio estava em tertúlias pouco literárias com uma dama da sociedade paulista, ex-mulher de alto executivo da indústria automobilística.
Foi a "crise da Marquesa de Santos" que entornou o caldo de Jânio. No dia 24, o aguardado jantar de confraternização da "Semana de Unidade Nacional", de Jânio com os 13 governadores, não mais aconteceu. Não havia mais presidente, e os governadores voltaram para casa. Tinha acabado a unidade nacional.


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