São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

À luz de velas

ALOIZIO MERCADANTE

Imagine uma cidade como São Paulo sem metrô. Sem semáforos. Sem elevadores. Sem rádio e sem televisão. Sem luz nas ruas. A população em casa e com medo. Isso é o que oferece, nos próximos seis meses, o governo Fernando Henrique Cardoso. Não adianta querer atribuir a crise do setor elétrico à falta de chuvas ou à incúria de governos anteriores. O índice pluviométrico médio dos últimos anos é inferior em apenas 2,5% à média histórica. Por outro lado, os reservatórios são planejados com um volume de água equivalente a cinco anos de operação, podendo suportar longos períodos de estiagem. O atual governo teve seis anos para equacionar o problema. Não o fez. Preferiu utilizar a água das reservas e apostar na privatização. A falta de investimentos, causa determinante da crise atual, reflete a falência dessa política de privatização e regulação do setor elétrico, que produziu um descompasso entre o aumento da oferta e o do consumo, superior a 10% por ano, acumulando déficit de 10 mil kW ao longo dos anos 90.
A estrutura do setor elétrico no Brasil é muito distinta da de outros países que desregularam seus mercados de energia. Nosso parque é essencialmente hidrelétrico, com a geração de origem hídrica representando mais de 90% do total. Em qualquer país organizado, inclusive nos Estados Unidos, a gestão e o controle de sistemas desse tipo são feitos pelo Estado, visando à otimização no uso dos recursos hídricos, à eficiência operacional sistêmica e à preservação do ambiente.
A privatização do setor elétrico foi vendida à sociedade como alternativa à falta de recursos públicos para bancar a expansão da infra-estrutura do setor e à alegada ineficiência gerencial do Estado. Se não havia recursos, o natural seria que o Estado promovesse a inversão privada ou mista em novos projetos. A realidade, no entanto, foi outra. O governo Fernando Henrique Cardoso optou por vender os ativos já existentes, sem estabelecer nenhum compromisso ou programa paralelo de investimentos. A privatização serviu basicamente para propiciar bons negócios aos investidores, em grande parte estrangeiros, e gerar "caixa" para atenuar conjunturalmente os desequilíbrios externos e internos produzidos pela irresponsável política de âncora cambial e juros altos, abertura e desregulamentação da economia. O resultado é o que se vê agora: um racionamento médio de 20% do consumo de energia elétrica, que, além do desconforto à população, produzirá impactos significativos sobre o PIB, o emprego e as receitas fiscais. Pela primeira vez na história recente, a falta de energia ameaça comprometer, nos próximos anos, o crescimento da economia.
Com um marco regulatório precário e a conivência da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), os lucros espetaculares das empresas privatizadas não se traduziram em investimentos direcionados à criação de novas unidades de geração de energia, mas, sim, em maiores dividendos distribuídos aos acionistas e, em grande parte, remetidos ao exterior. A redução de custos, com enxugamento de pessoal, cortes nas estruturas de manutenção dos serviços e medidas de aumento de produtividade, foi acompanhada pelo aumento expressivo das tarifas de energia, que, no nível residencial, superou a inflação em mais de 67% durante os seis primeiros anos da administração FHC.
Por que não foram feitos oportunamente os investimentos necessários? Três aspectos merecem destaque: 1) os investimentos no setor elétrico, nos últimos 20 anos, foram bancados pelas estatais, e não pelo Tesouro; com a guinada privatizante, o governo, mesmo controlando cerca de 70% dos ativos do setor, inibiu os investimentos das estatais e proibiu o BNDES de financiá-las, embora o banco tenha destinado R$ 5,2 bilhões ao financiamento das privatizações; 2) a elevação do custo médio derivada da utilização do gás natural para geração termelétrica e o risco cambial envolvido na operação das usinas -o gás é indexado ao preço do petróleo e pago em dólares- não estimularam as inversões privadas; e 3) o governo provocou a desorganização do sistema de planejamento estratégico do setor sem implantar instrumentos alternativos eficazes de regulação e comprometimento das empresas. Recorde-se que até o advento dos governos neoliberais tínhamos um planejamento estratégico para 20 anos, que permitiu ao sistema elétrico suportar taxas médias anuais de crescimento da economia de até 10%.
Em resumo, o governo FHC desmontou um dos mais eficientes setores de infra-estrutura do país, privatizou parte dos ativos existentes e agora está estatizando os novos investimentos. Das 49 novas usinas termelétricas que seriam bancadas pelo setor privado, apenas 15 estão sendo construídas e, destas, 13 com capital da Petrobras. Não obstante seu evidente fracasso, o governo agora quer aprofundar o "modelo", privatizando Furnas, conforme acertado com o FMI.
Furnas produz cerca de 39 milhões de mW e transporta outros 98 milhões nas suas linhas de transmissão, respondendo por um terço da energia elétrica consumida no país. As usinas da empresa têm capacidade de 8,5 milhões de kW, o que, ao custo-construção de US$ 1.400/kW instalado, significa que somente seu parque gerador vale aproximadamente US$ 12 bilhões. Sua privatização pode ser mais um bom negócio para os investidores externos e contribuir para a meta de superávit primário fixada pelo FMI. Entretanto não ajudará em nada a solução da crise energética atual nem evitará a crise maior, a do nosso desenvolvimento, para a qual nos está conduzindo a política irresponsável e antinacional do atual governo.


Aloizio Mercadante, 47, é economista, professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.



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